Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#35: Yawar Mallku
YAWAR MALLKU (Bolívia, 1969). Um dos mais importantes filmes sul-americanos jamais feitos e uma obra fundamental do ativista, esquerdista do movimento pan-continental nuevo cine latinoamericano dos anos 1960, Yawar Mallku (Sangre de Condor, em espanhol; Sangue de Condor) foi realizado primordialmente em linguagem quíchua dos nativos americanos e foi de uma retórica tão efetivamente anti-imperialista e pró-indígena que as Forças da Paz norte-americanas o baniram de ser exibido na Bolívia em 1971.
Em 1968, o coletivo cinematográfico Ukamau foi formado pelo diretor Jorge Sanjínes, o roteirista Óscar Sória, o diretor de fotografia Antonio Eguino, e o produtor Ricardo Rada para realizar filmes independentes. Toda a região estava em turbulência política, com ditaduras militares apoiadas predominantemente pelos Estados Unidos, e o Grupo Ukamau desejava lidar com o impacto negativo da influência dos EUA na Bolívia. Inicialmente a ideia era realizar um filme focando nos esforços de um professor campesino, mas ao ver em um artigo de jornal sobre a esterilização forçada de mulheres indígenas pelas Forças de Paz americanas, encontraram seu eventual tema. Pretendiam realizar um filme protagonizado por pessoas indígenas comuns encenando suas próprias vida para a câmera, mas inicialmente ninguém na comunidade escolhida de Kaata, confiava nos realizadores, e somente após o Ukamau participar dos rituais da comunidade e cumprirem as decisões do povo Kaata, é que foram habilitados a prosseguir.
O filme inicia com citações do papa, um nazista (Martin Borman), e um cientista americano, vinculando as conexões entre líderes despóticos ocidentais, a igreja e a ciência moderna como fontes dos problemas enfrentados pelos indígenas bolivianos. A narrativa inicia com uma briga doméstica, puxada pelo marido Ignacio Mallku (Marcelino Yanahuaya), e sua esposa Paulina (Benedicta Mendoza Huanca) indo ao topo da montanha para queimar pequenas bonecas, uma sugestão de crianças mortas. Soldados entram no vilarejo e levam um grupo de homem para serem executados, e Ignacio é gravemente ferido. Acompanhado de Paulina, é levado de caminhão para La Paz, onde seu irmão, Sixto (Vicente Verneros Salinas), inicia a busca por sangue para a operação de Ignacio. O primeiro flashback revela Ignacio se tornando o líder da comunidade, e flashbacks posteriores apresentarão os estrangeiros, membros das "forças do progresso", dando aos aldeões roupas usadas (incluindo botas que são muito grandes) e administrando "remédios" que posteriormente se revelarão serem agentes de esterilização. Sixto é inicialmente apresentado rejeitando sua "indianidade", mas ao entrar em contato com vários potenciais doadores brancos e observar o elevado grau de disparidade de riqueza, vê-se forçado a reconhecer que é incapaz de ajudar seu irmão, que morre no hospital, tornando-se politizado. Ao final, Sixto retorna a sua casa ancestral, e notoriamente a cena final do filme é uma câmera baixa de rifles apontados para o ar, em gesto desafiador de rebelião violenta.
O filme foi realizado em película preto&branco e 16 mm e custou somente 40 mil dólares, mas a fotografia de Eguino é surpreendente, particularmente por sua utilização da câmera baixa, ocasionalmente mesmo filmando rumo ao sol, refletindo crenças religiosas tradicionais incas. De fato, ainda que o filme pareça devedor do neorrealismo italiano - nos seus cenários naturais e atuações - e do cinema soviético - através de seus tropos de montagem e mensagem política, com a imagem final congelada convocando uma revolução - Yawar Mallku também sugere que as pessoas aprenderam tanto com a folha da coca e outros rituais e encontros coletivos e consultas aos seus deuses assim como ao mundo circundante, incluindo nesse as intervenções estrangeiras, através de seus olhos. Quando o filme foi justamente premiado em 17 de julho de 1969, em La Paz, as portas foram fechadas aos espectadores, aparentemente por uma diretiva da embaixada norte-americana. Mas os espectadores protestaram nas ruas da capital e, sob pressão de jornalistas e organizações universitárias, o filme foi lançado um pouco depois.
Yawar Mallku se tornaria de longe o filme boliviano mais popular de todos os tempos junto ao público local em 1969, ainda que não necessariamente indígenas, para quem aparentemente, o enredo tinha que ser explicado. Há uma compreensão que apesar de todas as boas intenções de Sanjínes e seu grupo, ainda eram outsiders intelectuais realizando um filme numa linguagem que não compreendiam. Yahar Mallku venceu os prêmios Georges Sadoul na França e uma série de festivais internacionais, incluindo Valladolid (na Espanha) e San Francisco, ambos em 1970. Em 1973 foi distribuído nos Estados Unidos, pela Tricontinental Film Center e, ao longo dos anos 80, nos cursos universitários de cinema ao redor da América do Norte, Yawar Mallku foi uma obra-chave do "Terceiro Mundo" e "terceiro cinema". Ver também CINEMA DOCUMENTÁRIO; CINEMA ETNOGRÁFICO.
Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 611-2.
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