Filme do Dia: À Meia-Luz (1944), George Cukor

 


À Meia-Luz (Gaslight, EUA, 1944). Direção: George Cukor. Rot. Adaptado: John Van Druten, Walter Reisch & John L. Balderston, baseado na peça Gas Light, de Patrick Hamilton. Fotografia: Joseph Ruttenberg. Música: Bronislau Kaper. Montagem: Ralph E. Winters. Dir. de arte: Cedric Gibbons. Cenografia: Edwin B. Willis. Figurinos: Irene. Com: Charles Boyer, Ingrid Bergman, Joseph Cotten, Dame May Whitty, Angela Lansbury, Barbara Everett, Emil Ramaeu, Tom Stevenson.

Paula Alquist (Bergman) é sobrinha de uma célebre cantora de ópera assassinada em sua residência numa praça londrina. Vivendo com ela, foi Paula quem descobriu o cadáver. Buscando se desvencilhar desse passado trágico,  é mandada por familiares para estudar fora. Ela tenta seguir a carreira da tia, mas se apaixona pelo pianista Gregory Anton (Boyer). O casal volta a viver em Londres, dez anos após, na mesma residência onde ocorrera o crime. Gregory sugere que todos os pertences que a façam lembrar da tia sejam isolados no sótão. Paula se acredita à beira da loucura, pois escuta vozes e vê coisas que ninguém mais percebe. Porém, um admirador de sua tia, Brian Cameron (Cotton), começa a investigar mais de perto o que ocorre na casa.

Iniciando in medias res, já após o assassinato da tia e com a utilização de lentes que deixam a sua fotografia em preto&branco próximo do universo do sonho (ou pesadelo), esse filme de Cukor consegue criar um grande senso atmosférico. Auxiliam para tanto não apenas a fotografia e cenografia virtuosas (sendo a última do célebre Gibbons, o maior nome da categoria no cinema clássico hollywoodiano), como igualmente as interpretações, com destaque para um Boyer que passa rapidamente de amante apaixonado para cruel e sádico marido – em alguns momentos sua relação antecipa o terror psicológico a ser trabalhado por Fassbinder décadas depois com seu Martha. Porém, mais que tudo isso, o que se destaca nesse filme talvez seja uma certa abordagem “psicanalítica” do enredo bastante comum na produção contemporânea (A Sombra de uma Dúvida, Quando Fala o Coração ou, mais sutilmente, Cidadão Kane) e aqui aplicada menos comumente numa dimensão retrospectiva (a narrativa ocorre no final do século XIX) e devidamente assentada nos códigos narrativos de então. Porém é bastante interessante, e provavelmente chamou a atenção de um realizador como Fassbinder, o modo como quanto mais a protagonista luta para se desvencilhar do seu “trauma” original, presente em toda essa produção acima referida, mais ela acaba por se enredar nele, seja ao encontrar acidentalmente com uma vizinha da praça onde morou, em um vagão de trem no estrangeiro, seja ao acabar se envolvendo com o homem que matara sua tia. A sexualidade assoma com uma certa sofisticação mas, ao mesmo tempo, bastante imperativa na figura de um destemperado Gregory, cuja dimensão selvagem de sua libido parece se adequar menos a recatada e polida sociedade na qual convivem do que ao mundo “selvagem” das classes “baixas”, aqui brilhantemente representada pela vulgar empregada vivida por uma jovem Lansbury, em sua estréia no cinema, cuja malícia se contrapõe ao recato “frígido” de sua patroa e a quem o marido, cinicamente aponta, a certo momento, a necessidade de tentar “instruir” sua esposa no terreno da lubricidade. Gregory pode ser, enfim, pensado como um personagem que se encontra na mesma galeria, ainda que devidamente adaptado para um gênero diverso e convivendo com uma atmosfera e período semelhantes, do protagonista de O Médico e o Monstro (1931), de Mamoulian. A atmosfera sinistra dessa produção parece mais efetiva que outras reconstruções do gótico do período mais famosas (Rebecca, por exemplo) e antecipa a de filmes mais abertamente sinistros como Os Inocentes (1961), de Jack Clayton. MGM. 114 minutos.

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