Filme do Dia: Boca de Ouro (1963), Nélson Pereira dos Santos
Boca de Ouro
(Brasil, 1963). Direção: Nélson Pereira dos Santos. Rot. Adaptado: Nélson
Pereira dos Santos, baseado na peça de Nélson Rodrigues. Fotografia: Amleto
Daissé. Música: Remo Usai. Montagem: Rafael Justo Valverde. Cenografia: José
Cajado Filho. Com: Jece Valadão, Odete Lara, Daniel Filho, Maria Lúcia
Monteiro, Ivan Cândido, Georgia Quental, Wilson Grey, Maria Pompeu, Shulamith
Yaari.
O
jornalista Caveirinha (Cândido) é enviado a casa de Dona Guigui (Lara), para
colher depoimentos a respeito do célebre Boca de Ouro (Valadão), bicheiro que
enriqueceu com o jogo, e é referência no bairro, cuja notícia da morte acabaram
de receber. A estratégia do jornalista é não contar nada a respeito do ocorrido
para Guigui, que traça um relato bem ácido do mesmo. Para exemplificar sua
sordidez conta a história do desempregado Leleco (Filho), que vai buscar ajuda
junto ao Boca para o enterro da sogra recém-falecida. Boca afirma que dará
muito dinheiro, porém pretende entregá-lo diretamente a esposa de Leleco,
Celeste (Monteiro). Leleco decide enfrentar Boca quando sabe de sua decisão de
ficar com sua mulher e é morto pelo bicheiro. Após saber que Boca faleceu,
Guigui tem uma crise histérica e conta para o próprio editor do jornal uma
segunda versão dos fatos. Leleco flagra um homem com sua esposa se beijando no
carro. Sabe através da própria Celeste se tratar do Boca. Decide que se não
ganhar no bicho irá assassinar o bicheiro. Celeste conta tudo ao Boca. Quando
Leleco chega na casa do bicheiro e se encontra em vias de matá-lo, é morto pela
própria esposa. A excessiva dor demonstrada por Guigui ao saber da morte do
ex-amante desencadeia uma crise familiar, com a ira de seu marido Agenor. A
reconciliação é orquestrada pelo cínico Caveirinha e Guigui, então, conta uma
terceira versão dos fatos. Boca se encontra temeroso diante da reação de
Leleco, mas deixa-o inconsciente e o mata com a ajuda de Celeste. Pouco depois,
chega Lúcia, socialite que já estudara com Celeste e de quem essa possuía
rancor. Celeste apresenta o corpo do marido morto, quando Maria Luiza defende
Boca como uma figura beata. Boca assassinará Celeste, após ameaçar fazer o
mesmo com Maria Luiza, por ter testemunhado a morte de Leleco. Na hora em que o
caixão de Boca sai da autopsia e uma multidão e a imprensa se acotovelam,
Guigui e Agenor fogem de tudo, inclusive do assédio do jornalista Caveirinha,
que fica sabendo que Boca fora assassinado por Maria Luiza.
Essa, que é
uma das melhores adaptações da obra de Rodrigues e um dos melhores filmes do
cineasta, consegue uma aproximação que, mesmo sem ser completamente destituída
de uma certa verve autoral, possui relação direta com a estrutura do filme de
gênero. As diversas versões do mesmo fato (que evocam de imediato o célebre Rashomon, de Kurosawa, correspondência
ao qual já fora associada à própria peça) não só relativizam a questão da
autenticidade da narrativa – questão que pouco importa ao filme – quanto, e
mais importante, demonstram que sua construção está diretamente associada aos
interesses e ao estado emocional do narrador. Nesse sentido, a primeira versão
é extremamente negativa e crua a respeito do personagem, repleta do
ressentimento da ex-amante, enquanto a segunda é altamente afirmativa, marcando
seu choque inicial com a morte do mesmo e a terceira procura demolir o mito e minimizar
sua bravura, selando seu passaporte com a continuidade da vida ao lado de sua
família. Nesse sentido, a fuga do casal ao final, é uma estratégia do cineasta
para aludir a uma possibilidade de futuro desvinculada da mediocridade moral e
ética até então destilada, marcando uma simpatia com os valores do “homem
comum” mais próximo dos ideais do Cinema Novo que da dramaturgia de Rodrigues.
Por outro lado, o papel central da mídia na orquestração dos fatos e sua
sensacionalização dos mesmos seria reapropriada, através da chave do deboche
explícito do momento posterior tropicalista, por Sganzerla em O Bandido da Luz Vermelha (a
denominação do Boca como “Drácula de Madureira”, por exemplo, seria
multiplicada muitas vezes pelos narradores do último), assim como o
auto-escracho do elemento popular, na figura de Wilson Grey ao final ou a
afirmação de Celeste de que é uma fracassada). Entre algumas das saborosas
curiosidades estão a manutenção de uma fala da peça que faz uma menção
debochada da institucionalização do cinema como afirmação cultural precária e
ao mesmo tempo esnobe relativa justamente ao Neorrealismo, movimento que por
sinal influenciou profundamente a obra inicial de Nélson Pereira e a ousadia do
concurso de seios, demonstrando uma liberalização dos costumes mais antenada
com o cinema europeu que americano. A obra de Rodrigues foi refilmada por
Walter Avancini, sem êxito de público ou de crítica, no início da década de
1990. Copacabana Filmes/Fama Filmes/Imbracine. 103 minutos.
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