Filme do Dia: Hitchcock/Truffaut (2015), Kent Jones
Hitchcock/Truffaut (França/EUA, 2015).
Direção: Kent Jones. Rot. Original: Kent Jones & Serge Toubiana.
Fotografia: Nick Bentgen, Daniel Cowen, Eric Gautier, Mihai Malamaire Jr., Lisa
Rinzler & Genta Tamaki. Montagem: Rachel Reichman.
Mesmo a determinado momento se
afastando quase por completo de sua premissa inicial, indicada por seu título,
que faz referência/reverência ao que o narrador (Matthieu Amalric) comenta com
um dos poucos livros indispensáveis sobre cinema, a entrevista efetuada por
Truffaut com Hitchcock, tão imerso se encontra nos diretores contemporâneos que
o comentam, o filme avança além de algumas superficialidades em ao menos uns três
filmes do realizador (O Homem Errado,
Um Corpo Que Cai, Psicose). Escutamos muitas vezes na banda sonora os áudios das
próprias entrevistas, assim como da tradução simultânea feita por Helen Scott e
quando Hitchcock pede que a gravação seja interrompida, quando Truffaut indaga sobre sua ascendência
católica, ou - e de forma mais
perversamente divertida – quando o entrevistado comentará algo sobre a cena em
que Jimmy Stewart espera que Kim Novak surja nua do banheiro em Um Corpo Que Cai, ocorre igualmente fades na imagem. Exageros à parte, como
se creditar ao cineasta britânico ter sido o primeiro em algumas coisas, as
falas de realizadores são bastante pertinentes. As primeiras incorporações de
trucagens visuais como a festa refletida no gelo do copo de champagne em O Pensionista (1927), antecipando um
efeito visual similar ao da bola de cristal que Kane segurava ao final de Cidadão Kane e o primeiro filme que é
apontado como 100% hitchcockiano, O Homem
Que Sabia Demais (1934). Hitchcock
comenta nostálgico que o linguajar visual conseguido nos anos mudos seria
corrompida com o som, ao que o documentário argumenta, através de alguns
depoentes, que foi uma tradição continuada pelo próprio realizador. Nos
créditos iniciais se consegue uma mescla dos acordes de Psicose com os de Noite
Americana, de Truffaut. Hitchcock exemplifica o suspense a partir de um
pedido de aceite ou negação de casamento em seu filme mudo Mulher Pública. Alguns dos momentos mais interessantes são os que
ficamos não apenas com os depoimentos de um realizador contemporâneo, como
quando se observa que não observamos a expressão de Judy a observar o quadro,
mas o realizador chama a atenção para a semelhança entre o coque dela e o da
mulher do quadro em que admira em Um Corpo Que Cai (Godard fará algo similar em seu Acossado) como também do próprio Hitchcock, como quando Wes
Anderson comenta cena de amor e tensão entre Cary Grant e Ingrid Bergman em Interlúdio e é seguido pelo mais
engenhoso comentário do mestre a respeito de oferecer ao espectador um ménage à trois com os dois. A
incompatibilidade do novo estilo de interpretação, à moda do Actor’s Studio com um realizador que,
tal como Bresson, mas muito a seu modo, compreendia que a expressividade
deveria advir sobretudo da própria construção visual mais que do ator – daí a
ausência de necessidade de uma grande interpretação de Leigh em Psicose – que não por acaso acarretaria
o conflito do realizador com Montgomery Clift em A Tortura do Silêncio. Destaque, tal como no sonho, para objetos
possuírem uma dimensão fetichizada em chave psicanalítica. A precisão na
escolha dos ângulos se encontra presente em vários depoimentos ilustrados com
cenas de filmes, inclusive uma certa “visão de deus” em um célebre plano de Os Pássaros, observado do alto a
combustão provocada em um posto de gasolina. O vanguardismo do realizador é
ressaltado quando ele imagina que o mundo já está preparado para Psicose, e Scorsese faz um comentário
que o filme bem poderia ser um legítimo representante antecipado da turbulenta
e inovadora década que se inicia.
Depoimentos também de James Gray, Oliviear Assayas, Paul Schrader, Wes
Anderson, Arnaud Desplechin, Peter Bogdanovich (com seu indefectível lenço no pescoço), David Fincher, Kyoshi
Kurosawa e Richard Linklater. Arte France/Artline Films/Cohen Media Group. 79
minutos.
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