Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#31: Filmes de Tango
Filmes de Tango. Ironicamente, dada que a essência do tango é o som da forma musical, o gênero do "filme de tango" teve seu pique na Argentina durante a era do filme silencioso. Apesar de alguns acreditarem que surgiu como dança - entre soldados sem mulheres na guerra contra o Paraguai - claramente se desenvolveu nos bares e bordéis de Buenos Aires no final do século XIX. Uma música muito urbana, formada do caldeirão cultural dos imigrantes europeus, criollos, o povo indígena, e descendentes de escravos africanos, a música combinava elementos do flamenco andaluz, a contra-dança hispânica, milónga argentina - a música rural gaúcha - a percurssão africana e cubana e a música do sul da Itália, e até as polcas e mazurkas européias. Como o rock & roll nos Estados Unidos dos anos 50, o tango foi enfaticamente uma música da classe trabalhadora, temida e desprezada pelas elites da sociedade argentina. Os grupos de tango originais eram trios - violino, violão e flauta - mas na mudança do século o bandonéon, o pequeno instrumento tipo acordeon, oriunda da Alemanha, e a verdadeira orquestra de tango surgiram.
O maior expoente do "filme de tango" silencioso foi o diretor "El Negro" José Agustín Ferreyra, cujos filmes não somente capturaram o espírito melancólico, romântico/pessimista da vida cotidiana porteña, mas também empregavam as letras de tango para títulos de filmes e passagens de roteiros. Para La Muchacha del Arrabal (1922), Ferreyra tentou sincronizar a canção-título (com Leopoldo Torres Ríos), com acompanhamento ao vivo por um dos líderes de um grupo de tango, a orquestra de Roberto Fírpo. Um ano após o lançamento do filme, Carlos Gardel, já o mais famoso cantor de tango argentino, grava a canção "La Muchacha del Arrabal". A popularização do tango na Europa se iniciou em 1910, mas a verdadeira ruptura internacional veio em 1926, com Rodolfo Valentino como um gaúcho dançando uma versão rígida e abastardada de tango no filme hollywoodiano The Four Horsemen of the Apocalypse [Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse]. Naturalmente os gaúchos nunca, jamais, dançariam um tango, mas isso não brecou a dança de se tornar um frêmito mundial.
Ao final dos anos 20, os cinemas argentinos eram repletos de orquestras de tango acompanhando os filmes silenciosos de Hollywood, Europa e Argentina. Uma orquestra de tango inovadora, liderada por Julio de Caro e apresentando os dois bandoneonistas Pedro Maffia e Pedro Laurenz, foi tão popular quando acompanhou filmes no Cinema Buenos Aires Select Lavalle em 1926, que as plateias iam somente para escutar a música. Os exibidores cinematográficos eram tão dependentes do tango que quando adveio o cinema sonoro em 1930, centenas de músicos se acharam subitamente desempregados. Além do que, o tango havia se tornado mais socialmente aceitável nos anos 20, mudando-se para cabarés e teatros, e a dança aumentou sua disseminada popularidade na Argentina, durante os anos 30, silenciado um pouco pelo golpe militar ao início da década. Um dos primeiros filmes sonoros realizados na Argentina, uma seleção de números musicais, Mosaico Criollo (1930), inclui Anita Palmero cantando o tango "Botarate" por Alberto Acuña e José de Cicco. Este filme ainda existe, assim como dez curtas sonoros produzidos em 1930 por Federico Valle, estrelando o canto (e algumas vezes atuação) de Carlos Gardel.
Enquanto a indústria cinematográfica argentina lutava para se adaptar a realização de longas sonoros, Gardel tomou vantagem da oportunidade de estrelar longas de fala hispânica da Paramount, filmadas em Joinville (França) e Nova York. Iniciando com Luces de Buenos Aires [Luzes de Buenos Aires] (1931), Gardel se tornou o primeiro e maior astro do tango-canción. Seguindo a trágica morte do cantor, El Día Que Me Quieras [No Dia Que Me Queiras], lançado em julho de 1935, tornou-se um dos maiores sucessos da história do cinema argentino. Os filmes feitos na Argentina protagonizando cantores de tango tendem a seguir a fórmula de Gardel de integrar ocasionais canções de tango em uma narrativa melodramática desde o mal sucedido Tango (1933), dirigido por Luis Moglia Barth, e o filme que introduziu às telas o grande jovem bandoneonista Anibal Troilo, Los Tres Berretines (1933), ao sucesso panlatino-americano de Ferreyra, Ayúdame a Vivir [Ajuda-me a Viver] (1936), estrelando Libertad Lamarque.
Manuel Romero, que foi co-escritor e assistente de direção de Luz\es de Buenos Aires, dirigiu um número de "filmes de tango" chaves, incluindo Los Muchachos de Antes no Usabam Gomina (1937), no qual a letra de seu tango "Tiempos Viejos" saúda a lendária Rubia Mireyra (interpretada por Mecha Ortiz); La Vida es un Tango [A Vida é um Tango] (1939), com Hugo del Carril e Sabina Olmos; e Carnaval de Antaño (1940), com Sofía Bozán e Charlo. Mas para o historiador de cinema argentino Jorge Miguel Couselo, o mais sofisticado dos diretores dos filmes de tango durante a primeira "idade de ouro" cinematográfica argentina foi Luis Saslavsky, cujos filmes Puerta Cerrada [Porta Fechada] (1939) e Eclipse de Sol [Ela é a Tal] (1943) denominou "pinturas de tango musicais" (Couselo, 1989, p. 142).
Iniciando em 1964, com Carlos Gardel, Historia de un Idolo, de Solly Schroder, uma série de filmes argentinos tem sido devotados ao astro do tango, incluindo Hasta Siempre Carlos Gardel (1973) e Gardel, el Alma que Canta (1985), mas não foi somente até o retorno à democracia que seguiu o pior regime militar que houve um renascimento do interesse no tango através do cinema argentino. Astor Piazzolla e seu tango nuevo teve protagonismo nos dois filmes dirigidos por Fernando E. Solanas, Tangos, el Exilio de Gardel [Tangos, o Exílio de Gardel, 1985] e Sur [Sul, 1988] e há três "documentários" exemplares mesclando sequencias encenadas ficcionais com material não ficcional, que foram realizados contemporaneamente: Tango, Mio (Reino Unido, 1985), dirigido por Jana Boková para a BBC; Tango, Bayle Nuestro (1988), dirigido por Jorge Zanada, e Tango Bar (Argentina/Porto Rico, 1988), dirigido por Marcos Zurinaga.
Boková descobriu pessoas razoavelmente normais em Buenos Aires que costumavam ser profissionais de tango, mas tinham passado por tempos difíceis, sem sequer abandonar sua paixão pela música. Eles propiciaram o foco nostálgico do filme, que é também combinado com antigas imagens de arquivo, incluindo trechos de Gardel, enquanto algum material encenado da busca de um jovem pela música antiga e um homem tentando conquistar uma mulher em um café é incluída para criar atmosfera. As filmagens documentais incluem planos atmosféricos do velho porto e um bocado de tango dançado. Há uma marcada ausência de narração over, e os personagens incluem um notável casal que dança há mais de 30 anos, assim como El Negrita/Juanita/Suzana, uma velha vociferante cantando tangos obscenos e falando que o tango tem sido "tudo" para ela.
Tango Bar é estrelado por Raul Julia, Valeria Lynch, e Ruben Juarez (um dos mais populares cantores de tango argentinos), com a dança a cargo do grupo Tango Argentino. A história é de um retorno do exílio, e a história do cinema descrita - Valentino como Zorro, Gene Kelly em The Pirate [O Pirata, 1948], o Gordo e o Magro em Way Out West [Uma Luta de Risos, 1944 - é crítica da apropriação hollywoodiana e europeia da forma musical argentina e clama por sua repatriação e renascimento. Tango, Bayle Nuestro foi realizado em 16 mm por um jovem realizador que admite, ao início do filme, que costumava odiar o tango como uma forma musical antiquada demasiada local. Como nos outros dois filmes, Zanada redescobre e revaloriza o tango. Ele está particularmente interessado na dança, e suas entrevistas com os dançarinos revelam que a forma de dança argentina possui uma grande variedade de estilos, que destaca menos o tenso erotismo que a estéril versão europeia. Mais experimental e ambíguo que os outros dois filmes, Tango, Bayle Nuestro intercala imagens de ruína industrial e golpes militares com entrevistas e imagens de arquvio de danças que fazem o espectador refletir sobre a dedicação, na abertura do filme, a "Hugo del Carril e Cine Liberación", uma mescla da tradição do tango clássico e política de extrema esquerda!
Em anos recentes, seguindo a ressurgência internacional do tango, encorajado pelo enormemente bem sucedido "filme de arte" de Carlos Saura, Tango (Espanha/Argentina, 1998), que ganhou um prêmio em Cannes e foi indicado ao Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira (como submissão argentina) em 1999, mais de vinte documentários sobre o tango argentino tem sido realizados somente na Argentina, incluindo Tango Salón, Confíteria la Ideal (2004), de Boková e, mais recentemente, Tata Cedrón (2011), dirigido por Fernando Pérez, sobre Juan, o líder do grande Quarteto Cedrón, que por anos viveu no exílio em Paris, mas que agora fica metade do ano em Buenos Aires. Se alguém buscar comprar DVDS de "tango" na net, encontrará vídeos ensinando a dança; imagens de concertos de nomes como Piazzolla, Raúl Barboza, Sexteto Mayor, e Patricia Sosa; e numerosos títulos de ficção e não-ficção. Apesar de há muito não existir o gênero do filme de tango per se, a música é mais popular que nunca.
Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 547-50.
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