Filme do Dia: Viagem Através do Cinema Francês (2016), Bertrand Tavernier

 



Viagem Através do Cinema Francês (Voyage à Travers le Cinéma Français, França, 2016). Direção e Rot. Original: Bertrand Tavernier. Fotografia: Jérôme Alméras, Simon Beaufils & Julien Pamart. Música: Bruno Coulais. Montagem: Marie Deroudille & Guy Lecorne.

Nem de longe possuindo a mesma vivacidade de seu modelo – Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano com Martin Scorsese, realizado no “centenário” do cinema – e mesmo excluindo o “pessoal” do seu título, é evidente que essa também é uma história pessoal, inclusive com bem mais inserções de Tavernier que as de seu colega norte-americano e, mais importante que isso, com um escopo de filmes que acompanha sua trajetória de cinéfilo, portanto deixando de fora o Primeiro Cinema e o cinema mudo em geral (sendo esse contemplado parcialmente na obra em que são compiladas dezenas de filmes de Lumière comentados com espirituosidade pelo realizador); talvez seja essa espirituosidade que falte um pouco aos comentários de Tavernier que se detém longamente nos dois cineastas que provocaram os primeiros impactos em sua trajetória cinéfila: Jacques Becker e Jean Renoir. Por vezes o deslumbramento excessivo por alguma cena não se traduz em algo tão evidente quanto em Scorsese. Noutras Tavernier demonstra o erro de um virtuoso plano-sequencia de Renoir ter sido creditado como mais longo que de fato, um corte para um plano mais fechado evidencia. Aliás, de Renoir se detendo sobre uma quantidade grande de suas produções (sobretudo dos anos 30), ele invoca tanto a valorização da profundidade de campo enquanto vingança edipiana contra o pai, sua valorização dos atores – colérico com seu fotógrafo ao tentar demover Jean Gabin por conta da iluminação do local em que se encontrava em A Besta Humana – e apresentando a maravilha visual que é A Grande Ilusão, mas sem deixar que o culto e a admiração obscureça revelações nada difundidas de seu flerte com o colaboracionismo quando da invasão alemã, contada a Tavernier por ninguém menos que o icônico Jean Gabin, nas suas palavras, um gênio como diretor, como pessoa uma puta. O próprio Gabin sofre uma eulogia sem meios-tons, de longe mais laudatória que a que o próprio Gabin demonstra ao refazer seu percurso já velho numa entrevista, demonstrando um inescapável azedume por ter que abandonar a França pela Universal norte-americana justamente no momento mais glorioso de sua carreira, e se referindo a alguns bons filmes que fizera antes da Guerra, para retornar de cabelos brancos pelo susto de ter tido seu navio atacado, assim como a distância de seu país. Tavernier comenta que ele voltaria caluniado, como se quisesse efetuar uma espécie de semi-reparação histórica do maior ator francês do período clássico em caminho inverso ao intocável Renoir. A calúnia que lhe é dirigida é que voltara burguês, e que Tavernier rapidamente se apressará em desmentir apresentando-o em inúmeros papéis como trabalhador em filmes como A Travessia de Paris (1956), de Claude Autent-Lara ou O Gato (1971), de Pierre Granier-Deferre, e contracenando com estrelas em ascensão como Jeanne Moreau e Brigitte Bardot. Em Macaco no Inverno (1962), de Henri Verneuil, o símbolo do “cinema do papai” contracena com o rosto que encarna como poucos a Nouvelle Vague, Jean-Paul Belmondo, chamado pelo pouco humorado personagem de Gabin justamente de novato. Se deter por tanto na figura de Gabin é uma preguiça similar a de contar anedotas envolvendo Gabin mais que desvelar pequenas joias da cinematografia francesa e os motivos para assim as ter como tais. Também discute detidamente o legado de Marcel Carné, destacando as rusgas com seus colaboradores, rusgas que por sinal permanecem indeléveis no tempo – como quando se observa o depoimento de um deles décadas (Henri Jeanson) após que espeta que Duvivier sim, sabia dirigir os atores. Posição que Tavernier matizará com a do próprio realizador. É verdade, diz ele, que Prevert, seu roteirista por muito tempo, estava certo em querer Simone Signoret em Portas da Noite (1946), ao invés de Nathalie Nattier, mas nada supera a vingança de Jeanson (um tanto auto-reflexiva e moderna de fazer uma pilhéria da famosa criação de atmosfera, geralmente com neblina, provavelmente um dos itens principais de se adjetivar como poético o realismo francês dos anos 30) em um filme do próprio Carné, em Hotel do Norte. Porém, mesmo que não comentado por Tavernier, foi sinal de compreensão e não intransigência Carné ter deixado a cena no filme, mesmo provavelmente tendo notado a ironia com suas próprias opções estéticas. E ainda trouxe referências únicas a Guerra Civil espanhola e a homossexualidade de um personagem, observada de forma simpática. Colaboradores por trás das câmeras também são homenageados como é o caso de Maurice Jaubert (1900-1940) e sua colaboração com vários luminares do cinema clássico francês, inclusive com aqueles que, como ele, foram-se precocemente, como é  caso de Vigo e seu monumental L’Atalante. Também se faz questão de demarcar suas diferenças para com o uso da música efetuado por Hollywood. Também na contra-corrente ao gosto hollywoodiano pelo sinfônico, Tavernier destaca três trilhas musicais em que um instrumento ganha proeminência – e o efeito mais notório parece saltar do primeiro de seus exemplos, o violão em Brinquedo Proibido (1952), de René Clément. Como Scorsese, o realizador francês apresenta títulos canônicos, mas igualmente filmes praticamente desconhecidos do grande público (e no caso do cinema francês, certamente isso vale mais que mesmo os mais independentes norte-americanos). Não o faz através da segmentação didática de seu colega norte-americano talvez, mas quando se detém um pouco mais nesse quesito, o filme do hoje esquecido Jean Sacha com o herói policial Eddie Constantine (Cet Homme est Dangeroux), marcado por sua influência ao trabalhar com Welles, presente no barroquismo visual da iluminação ou o uso da lente focal curta que tanto agradava aquele mas era praticamente ignorada pelos realizadores franceses. E se o cinema independente de baixo custo norte-americano gerou nomes como Joseph H. Lewis, o que dizer de Edmond T. Gréville, que, em Menaces... (1940) unia a criatividade visual – os vários rostos emoldurados como se o quadro estivesse multiplicado em vários – em uma pensão sob o temor da ameaça, e ainda entra a ousadia temática, da ameaça nazista, tornando-se o único filme francês do período a abordar diretamente a questão. E, somado a tudo isso, um cinéfilo apaixonado que também filmava no Reino Unido e que apesar de sua vasta filmografia, precisou do auxílio de René Clair (que o havia dirigido em Sob os Tetos de Paris, três décadas e meia antes) para ser enterrado. Sobre Jean-Pierre Melville, um de seus padrinhos no cinema, entre os elogios e a críticas a elementos de seus filmes, não esqueceu as célebres pendengas entre ele e os atores (incluindo um áudio de um exaltado Jean-Paul Belmondo a gritar com ele por seus constantes atrasos, que não é um fantoche), mas também a exatidão de seus planos/contraplanos (cuja minúcia é afirmada por um de seus assistentes, o futuro cineasta Volker Schölondorff). E também a utilização maciça do seu próprio estúdio e adjacências em seguidos filmes. A retroalimentação Hollywood-Melville-Hollywood, também é exemplificada, com o cineasta “roubando” um palito nos dentes do comissário de André de Toth, enquanto Tarantino, por sua vez, surrupiará não uma cena ou um gesto, mas a violência emergindo do mais banal cotidiano de uma conversa entre amigos observado em Técnica de um Delator para o início de seu Bastardos Inglórios. A influência do cinema americano também se encontra na estilização de um universo que pouco dialoga com o mundo histórico concreto de sua época, com carros, roupas e até persianas extraídas desse cinema, para construir, no entanto, algo completamente diverso.  Muito acertadamente, Tavernier, a partir de uma cena de Técnica de um Delator, apresentando todas as minúcias do processo de esconder as provas do crime, demonstra uma proximidade maior do cinema de Bresson que daquele que seria seu ícone, William Wyler.  Tavernier não cai na facilidade de dividir o cinema francês entre antes e depois da Nouvelle Vague, e algo que tangencia o movimento, preferindo observá-lo pelo viés do produtor Georges de Beauregard e por sua própria participação na equipe de filmes como Adieu Philippine, O Desprezo e O Demônio das Onze Horas ou ainda do estúdio onde encontrava Godard, Chabrol ou Agnès Varda, sobre o qual (tal como em O Demônio) deixa que um crítico discorra sobre Cléo: das 5 às 7. O filme termina com um inesperado tributo ao amigo e cineasta Claude Sautet e pelo recorte presente na dedicatória final, temos essa mescla já referida entre o canônico e as escolhas mais idiossincráticas que confere ao documentário sua marca pessoal, praticamente colada as mãos trêmulas e olhar estrábico (estrabismo provocado pela fome da Guerra) de seu velho diretor. Descontada a possibilidade algo improvável – dois anos após não existe nenhum projeto nesse sentido que tenha vindo a público – de uma continuação que abarque o que foi produzido dos anos 1970 até os dias dessa produção, em nenhum momento Tavernier gasta a mínima saliva para justificar o seu recorte. Se não pode utilizar o mesmo motivo de seu colega norte-americano, de abandonar sua história justamente no momento em que começava, ele próprio, a fazer parte da indústria, já que dá amplo destaque a colaboradores e amigos pessoais como o caso de Sautet, poder-se-ia talvez facilmente justificar como o período mais vibrante do cinema francês, o que não apenas seria deselegante com quem veio após como eclipsaria o momento em que a França provavelmente dominava a indústria mundial, por volta do Primeiro Cinema. Little Bear/Gaumont/Pathé para Cohen Media Group/Pathé. 192 minutos.

 

 

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