O Dicionário Biográfico de Cinema#267: Jean Vigo

 


Jean Vigo (1905-1934), n. Paris

1929: À Propos de Nice (d); 1931: Taris (d); 1933: Zéro de Conduite [Zero em Conduta]. 1934: L'Atalante.

A votação dos críticos para se chegar aos "dez melhores filmes já realizados" que Sight & Sound conduz a cada dez anos tem apresentado algumas surpreendentes mudanças de gosto. Não menos importante, a aparentemente declinante reputação de Jean Vigo. Não que necessariamente se indagado "o quão bom é Vigo?", a maioria dos críticos não respondesse "mais que bom". Mas enquanto Zéro em Conduta e L'Atalante coletaram vinte e quatro votos em 1962, e L'Atalante foi considerado o "décimo melhor filme", em 1972 obtiveram apenas seis votos entre eles. O declínio continuou em 1982, mas em 1992 L'Atalante estava de volta ao que lhe pertencia - na lista dos dez melhores. Tenho conhecido estudantes a se retirarem cansados de uma cópia ruim de 16 mm de L'Atalante, mas tenho visto crianças fascinadas por uma excelente cópia de TV do mesmo filme. A redescoberta de 1992 tem muito a ver com uma completa restauração de L'Atalante. O que pode sugerir que muito do impacto de Vigo é na sensualidade da imagem. 

Mas é ainda misteriosa que a pungência da carreira de Vigo tenha sido tratada ligeiramente. É o primeiro jovem mártir do cinema, e não é claro o porque de sua fama ter sofrido quando sua devoção autoconsumidora ao cinema se tornou crescentemente corrente entre os jovens. Há um prêmio nomeado em seu tributo, na França. E poderia haver escolas de cinema comprometidas com o exemplo dele. Vigo precisava de cinema e morreu em sua busca. Portanto, a biografia vale a pena ser detalhada, e temos a sorte de termos toda a sua vida por P.E. Salles Gomes. Vigo foi o filho de um anarquista francês conhecido como "Miguel Almeyreda". Isto o encaminhou à política e a um primeiro sentido potente de ultraje, quando Almeyreda morreu, em circunstâncias misteriosas na prisão de Fresnes, em 1917, e Vigo levado ao sul para ser educado. Retornou à Paris aos 19 anos, para estudar na Sorbonne, mas subitamente sucumbiu à doença que lhe traria impedimentos pelo restante de sua vida. Foi numa clínica para tuberculosos que encontrou sua futura esposa, "Lydou", Elisabeth Lozinska. Já havia sido encorajado por Autant-Lara e trabalhado como assistente do fotógrafo Léonce-Henri Burel. Mas em 1929 seu sogro emprestou-lhe ou lhe deu o dinheiro com o qual comprou a câmera e fez À Propos de Nice, com ajuda do fotógrafo Boris Kaufman, irmão mais jovem de Dziga Vertov.

Vigo agora teria quatro anos para viver, e os passou em comunhão próxima com Lydou, Kaufman, e sua câmera. Ele e sua mulher lutavam com a doença: foi forçado a vender a câmera para ter dinheiro para viver; nenhum de seus filmes prosperou. Germaine Dulac o ajudou a configurar o documentário dele sobre o nadador Jean Taris. Jacques-Louis Nunez financiou Zéro em Conduta, que causou tal controvérsia que foi banido. Por fim, Vigo realizou seu único longa, L'Atalante, novamente com apoio de Nounez e investimento da Gaumont. Mas o distribuidor teve o medo de sua intensidade e lançou uma versão "popularizada". Vigo estava demasiado enfermo para contestar o episódio de forma mais incisiva, e dentro de meses estaria morto.

A sequencia da obra de Vigo é o da fúria sendo substituída pela ternura, e de seu surrealismo poético movendo-se para uma pesquisa social para a realização de estados da mente. À Propos de Nice foi sem dúvida alguma influenciado pelos cinejornais-eulogias da Rússia bolchevique de Dziga Vertov. Mas enquanto o lirismo de Vertov está baseado na aguardada harmonia entre o homem de cinema e uma sociedade rejuvenescida, o amor de Vigo pelo visual se volta para uma sátira do parque infantil da Cotê d'Azur. À Propos de Nice é surpreendentemente moderno: como toda sátira relevante, o objeto de ataque é duradouro. O neurótico sol tomado pelos ricos e aspirantes a ricos ao lado de um Mediterrâneo estagnante são já percebidos no documentário inquisitivo de Vigo. Há uma admirável e hostil ironia na maneira que suas dissoluções despojam uma ociosa jovem, enquanto está sentada de pernas cruzadas, em uma mesa ao sol. Acima de tudo a direção de fotografia é descontraída, íntima e liberta. 

Há amplas razões na vida de Vigo para tal antipatia em relação aos burgueses em busca de prazeres. Taris foi algo como uma diversão, um exercício de efeitos de câmera sobre um tema isolado que, no entanto, propiciou a Vigo uma de suas imagens mais fertéis, a do nado subaquático. Toda esta escolaridade incipiente foi vingada em Zéro em Conduta, quarenta e quatro minutos de sustentadas filmagens ásperas, em crescendo anarquista. A tentativa da sociedade de arregimentar a infância crua, e o fracasso da tentativa são transmitidos pela fotografia em câmera alta bastante afetuosa. O que ainda impressiona, a respeito de Zéro é a caracterização vibrante de autoridades como anões e bonecos de palha, ou macabras, e a atrativa espontaneidade das crianças, bastante fiéis a sua linguagem privada, sua casual ferocidade e o amor impecável a existir entre elas. 

Esta nova postura calorosa está no cerne de L'Atalante, uma história bastante simples atribuída a Vigo pela Gaumont: um jovem capitão se casa e se instala em uma barcaça itinerante, onde trabalha com um homem mais velho, Jules; o casamento enfrenta dificuldades e, em Paris, a esposa foge; no entanto, a seperação os afeta e eles se reencontram. O distribuidor tornou rude a história de amor, mas em anos recentes, o filme tem sido restaurado. Em acréscimo, L'Atalante é uma peça de cinema operário: as duras cidades à beira do Sena e a vida na barcaça são retratadas sem hesitação e com uma franqueza humana que desmonta filmes como Berlim, de Ruttmann e está à frente de Dziga Vertov. 

Ao mesmo tempo, Vigo deu a L'Atalante um ambiente imaginário e onírico: o rio é o fluxo da vida; a barcaça é uma ilha humana; e Paris a cidade universal. O deleite de Godard de tornar Paris uma cidade imaginária foi sentido anos antes por Vigo. Mas, mais importante, L'Atalante é sobre uma atitude mais profunda em relação ao amor que a Gaumont compreendeu. É o amor sem explicação falada, não afetado por canções sentimentais; mas o amor como uma misteriosa e passional afinidade entre animais humanos desarticulados. Um conto de fadas sobre pessoas simples, até mesmo feias, sua intensidade se encontrando sempre em suas imagens. Michel Simon, uma figura exótica tatuada na cabine apertada; a noiva apoiada incerta contra o leme da barcaça; e Jean Dasté nadando debaixo d'água em busca de seu amor perdido. 

A façanha já havia sido enorme, mas sua natureza era muito propensa à dor e ao desastre para sobreviver. Ele foi deliberadamente um extremista para encontrar um local seguro na indústira cinematográfica francesa, muito menos com o avanço da guerra. A sensibilidade vulnerável de Vigo enfatiza a maior calma e robustez de Buñuel. Mas Vigo tem sido uma influência primordial no cinema francês, particularmente em Truffaut. E If [Se...] é um tributo consciente a Zéro em Conduta. Todo estudante de cinema que junta dinheiro para um projeto sem esperanças de ser vendido está seguindo um caminho difícil, que Vigo foi pioneiro.


Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York Alfred A. Knopf, 2014, pp. 2722-25.

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