Filme do Dia: Técnica de um Delator (1963), Jean-Pierre Melville


Técnica de um Delator : Foto Jean-Paul Belmondo, Jean-Pierre Melville

Técnica de um Delator (Le Doulos, França/Itália, 1963). Direção: Jean-Pierre Melville. Rot. Adaptado: Jean-Pierre Melville, a partir do romance de Pierre Lesou. Fotografia: Nicolas Hayer. Música: Paul Misraki. Montagem: Monique Bonnot. Dir. de arte: Daniele Guéret. Cenografia: Pierre Charon. Com: Jean-Paul Belmondo, Serge Reggiani, Jean Desailly, Philippe March,  René Lefévre, Fabienne Dali, Monique Hennessy, Carl Studer, Daniel Crohem, Jacques De Leon.
Após assassinar o joalheiro aparentemente parceiro, Gilbert (Lefévre), Maurice Faugel (Reggiani), recém-liberto de um período de seis anos na prisão,  enterra o produto de seu roubo e conta tudo para sua parceira, Thérèse (Hennessy) e ao melhor amigo, Silien (Belmondo). Silien retorna a casa de Faugel, amordaça e espanca Thérèse para que ela revele onde se encontra o companheiro. Faugel se encontra em meio a outra ação criminal numa mansão com o parceiro Rémy (Nahon) quando é surpreendido e ferido em um ombro pelo Inspetor Salignari (Crohem), que é morto. Maurice deixa a arma com o qual atirou contra o inspetor nas mãos do parceiro morto. Ele acorda no dia seguinte no apartamento do amigo Jean (March), após ter ficado inconsciente. Ninguém sabe quem o levou lá. A Polícia pressiona Silien acreditando que ele sabe quem era o parceiro de Rémy, mas ele afirma não ser informante e estar se afastando da vida criminal. Fica-se a par que o carro que resgatou Maurice foi encontrado destruído com o corpo de Thérèse em seu interior. Pressionado outra vez pela Polícia, que ameça uma falsa acusação contra ele, Silien encontra o paradeiro de Maurice e esse é preso. Silien desenterra o produto do roubo de Maurice e a arma. Ele vai até o clube de Nuttheccio (Piccoli) e promete a Fabienne (Dali) que a livrará de sua relação abusiva com ele, se essa testemunhar que esse e Armand (De Leon), seu comparsa, que iam receber as joias de Gilbert no dia que esse foi assassinado, foi que o mataram. Silien mata Nuttheccio, enquanto Fabienne liga a Armand, afirmando que Nuttheccio encontrou as joias. Quando Armand vai até o local é igualmente morto por Silien, que coloca a pistola nas mãos de ambos, simulando um duplo assassinato. Maurice é solto da prisão, após a Polícia acreditar que Nuttheccio e Armand foram os verdadeiros autores do crime. Silien afirma a Maurice que foi Thérèse quem avisou a Salignari sobre o roubo à mansão. Sabendo de tudo pelo próprio Salignari, Silien vai ao local e leva Maurice ao apartamento de Jean. Quando se encontrava na prisão, Maurice fizera um trato com seu companheiro de cela, Kern (Studer), para que esse matasse Silien, que ele o recompensaria com as joias que havia roubado. Sabendo agora que Silien fora seu amigo leal e não delator, Maurice vai até a residência que Silien pretende estabelecer sua nova vida longe do crime com Fabienne, para avisar Kern que desfaça o pacto, porém ao lá chegar é confundido com Silien e morto. Pouco tempo depois Silien chega a sua residência e descobre o cadáver do amigo que lhe alerta sobre o homem que se encontra por detrás do biombo. Ambos trocam tiros e se matam.
Com uma trama tão cheia de nuances e personagens, o filme parece ser um exemplo de fazer inveja aos próprios enredos rocambolescos e repletos de mudanças de compreensão quanto ao caráter de seus personagens do cinema noir com o qual diretamente dialoga. O tema da traição e da lealdade, tão importante para um realizador como Jacques Becker (com quem Reggiani inclusive trabalhou em uma de suas obras-primas) também o é para Melville, que mesmo fazendo uso de uma reconstituição por imagens e acrescentando outras ainda não vistas no momento em que Silien esclarece tudo a Maurice, ainda assim deixa o espectador zonzo com tantas informações ressignificadas em tão pouco tempo, numa estrutura narrativa que, inclusive, antecipa releituras que o próprio cinema norte-americano efetivou do noir em gerações posteriores como Altman (Um PerigosoAdeus) ou Tarantino, confesso admirador dessa produção. Se o cinema de Melville foi inspirador para o Godard em início de carreira (o cineasta surgindo numa ponta de seu aclamado Acossado), Melville retribui o gesto ao trazer novamente Belmondo para o elenco, como o de seu anterior Leon Morin, Padre,  conseguindo nuances diferenciadas de interpretação do mesmo, do sádico algo infantil e inconsequente que se esboça ao início, retrato cômodo do que parecia ser um delator para uma figura mais generosa e madura que o amigo a quem protege tão tenazmente, numa reversão de papéis evocativa de um filme em universo bastante distinto como A Malvada (1950), de Mankiewicz. Se referências ao Segredo das Joias (1950), de Huston, surgem no momento em que Silien demonstra seu amor por cavalos, a ojeriza do cineasta pela filmagem em locações se encontra evidente em sua continuidade com a prática de filmar os momentos em interiores de veículos em estúdio com evidentes projeções ao fundo, tal como o próprio cinema clássico americano o fazia com tanta diligência. Igualmente como naquele não se escapa à misoginia habitual, com a figura feminina enquanto sinônimo de traição ou como esperança de uma nova vida, interrompida pelo peso do passado e é muito estimulante se observar o quanto realizador se apropria desses clichês em uma moldura ao mesmo tempo similar e distinta. Não falta sequer a apropriação de um tique de um dos heróis com um conjunto de moedas, de forma nada distante do protagonista de Scarface (1932), dentre tantos. Pode-se alegar que a eficácia de uma trama tão complexa deve muito ao romance que lhe deu origem, embora não seja pouco tê-la traduzido em imagens, mesmo que em chave mais discreta e de longe menos autoral que um Altman ou – e principalmente – Godard. Destituído de um senso atmosférico demasiado onipresente quanto talvez outras produções suas, com exceção parcialmente de seu prólogo enevoado e um ou outro momento, há um cuidado evidente com os objetos de cena e até se brinca com eles, como no momento em que, no assalto à mansão, por duas vezes quase se derruba um vaso sobre uma mesa. Nahon, aqui em papel relativamente pequeno, em seu filme de estreia, é o protagonista de várias produções dirigidas por Gaspar Noé, a exemplo de  Sozinho Contra Todos (1998). Volker Schlöndorff foi assistente de direção. Destaque para a cena em que ocorrem os créditos iniciais, que toma partido da alternância entre claros e escuros da caminhada de Maurice até a residência que divide com Gilbert. Compagnia Cinematografica Champion/Rome Paris Films. 108 minutos.


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