O Cine PE, que começa sábado, ganha cara nova e foco curatorial

Desde que foi criado, o Cine PE - Festival do Recife guardava um desejo de seus fundadores, o casal Sandra e Alfredo Bertini. "A gente sempre dizia que, na sua maturidade, na 18.ª edição, o festival iria se internacionalizar." Promessa feita tem de ser cumprida. O 18.º Cine PE, que começa no sábado, será internacional. E será a consequência de uma conversa que Sandro Bertini teve com o crítico, jornalista e atual analista de dramaturgia da TV Globo, Rodrigo Fonseca, no set de Lula, o Filho do Brasil.
O ano era 2009 e ambos visitavam o set do longa de Fábio Barreto, em Pernambuco, a convite do produtor Luiz Carlos Barreto. Conversaram sobre o festival, e como melhorá-lo. O Cine PE - Festival do Recife é o Maracanã dos festivais, mas nunca teve um foco curatorial. Os filmes compunham mais uma seleta entre o que havia de disponível no mercado. Foram necessários cinco anos para que a nova fase se concretizasse. Ao se internacionalizar, o Cine PE passa a existir para o mundo. Foram 300 inscritos para a etapa nacional - 72 longas e o restante, curtas. Os filmes estrangeiros estão vindo todos a convite.
Não é uma seleção aleatória. O foco curatorial está nas questões da identidade e da memória. E o conceito é claro - se o festival é de público, o cinema de autor que privilegia tem de dialogar com as massas. Rodrigo Fonseca está feliz com sua dupla seleção. "A separação entre documentário e ficção vai produzir uma estranheza, mas espero que seja positiva. Sempre achei que não apenas a seleção, mas a premiação também era caótica. Misturavam-se coisas demais, o festival ganha agora uma unidade e um conceito."
Internacionalizar não significa latinizar. "O Cine Ceará já cumpre muito bem o papel de ser uma janela para a latinidade. E no Recife já existe o Janela, um festival de cinema autoral que propõe coisas radicais. Queremos a autoria, mas que dialogue com o Cine-Teatro Guararapes lotado. O objetivo é fazer com que o público queira voltar toda noite." A mostra competitiva de ficção é integrada pelos longas Anni Felici, da Itália, Muitos Homens num Só, do Brasil/Rio de Janeiro, Mundo Deserto de Almas Negras, do Brasil/São Paulo, O Menino no Espelho, do Brasil/Minas Gerais, Romance Policial, do Brasil/Rio, e Todos Tenemos Un Plan, da Argentina.
Novo Cine PE põe foco na questão da identidade
Existem críticos que rezam pela cartilha do cinema de autor e parecem fazer suas escolhas de olho na bilheteria dos filmes. Se o público gosta, eles são contra. E vice-versa. Rodrigo Fonseca pertence a outra categoria, que acredita que filmes de autor não são necessariamente venenos de bilheteria. Akira Kurosawa, Federico Fellini, Luchino Visconti tiveram grandes sucessos de público ao longo de suas extraordinárias carreiras. E hoje autores como Christopher Nolan e Alfonso Cuarón estão assinando os grandes blockbusters de Hollywood.
Para selar a internacionalização do Cine PE, Fonseca espera lotar no sábado, na abertura, o Cine-Teatro Guararapes com a nova comédia de Wes Anderson, Grande Hotel Budapeste, que passa fora de concurso, depois de inaugurar a Berlinale/Festival de Berlim, em fevereiro. "Foi a Fox que nos procurou oferecendo o filme", diz Sandra Bertini, criadora com o marido, Alfredo Bertini, do festival. Ela constrói uma metáfora simples para explicar porque a internacionalização demorou o tempo de uma maioridade. "Sou economista de formação. Aprendi a encarar as coisas com planejamento. Não teríamos condições de iniciar um festival internacional já na primeira edição. Fomos construindo passo a passo, ganhando a confiança do Poder Público, para mostrar que não éramos aventureiros da classe artística. E agora chegamos, finalmente, a esta nova etapa."
Cada festival de cinema brasileiro guarda uma identidade particular. O de Brasília, à sombra do poder, tradicionalmente foi usado pelos jovens como plataforma para manifestações políticas. O festival também é o que mais honra, às vezes excessivamente, os luminares herdeiros do Cinema Novo. No Sul, o Festival de Gramado, que concorre com Brasília em antiguidade, foi para outro lado e sempre teve uma queda pelo tapete vermelho. Em Gramado, qualquer global da novela das 6 sempre provocou mais frisson que os grandes autores. O festival internacionalizou-se, virou latino e brasileiro, houve tentativas para minimizar o efeito tapete vermelho.
O Recife, por outro lado, é o grande festival de público. O próprio fato de ocorrer num ginásio de esportes transformado em cinema - o Cine-Teatro Guararapes, o Maracanã dos festivais de cinema, em Olinda -, contribui para isso. Já houve filmes que passaram para 3 mil pessoas, em sessões abarrotadas. O calor do público recifense sempre foi algo bonito de ver, mas os filmes volta e meia deixavam a desejar. Razões não faltavam para isso - um problema de curadoria, ou de falta de; a questão da data. No primeiro semestre - em abril/maio -, os filmes que participaram de grandes eventos no ano anterior estão estreando e os completamente inéditos estão se reservando para grandes eventos internacionais ou para os maiores festivais do País (Gramado e Brasília). A internacionalização pode quebrar a escrita.
Rodrigo Fonseca explica o foco da curadoria - "São dois caminhos que convergem numa mesma trilha, a memória. O tema dominante deste festival é a questão recorrente da identidade. Troca de identidade, reconstrução da identidade. E não falo apenas da identidade de indivíduos. O filme do (Daniele) Luchetti, Anni Felici, o concorrente italiano, busca reconstruir a tradição da grande comédia italiana dos anos 1950 e 60. Não quero cair na facilidade de só pensar o cinema de gênero como terror. A grande comédia italiana, de Dino Risi e outros autores, nutriu minha experiência e a de gerações de espectadores. Vamos compartilhar isso com o Luchetti."
Pela primeira vez, a competição será dividida em quatro segmentos (curtas pernambucanos, curtas nacionais, documentário e longa de ficção), com júris próprios, e abertura para filmes de outros países. Três dos concorrentes brasileiros na mostra principal são policiais. Alice Braga e Vladimir Brichta interpretam personagens de João do Rio em Muitos Homens num Só, de Mini Kerti, um policial de época. Jorge Duran mistura cinema, literatura, o Rio e o deserto do Atacama no thriller Romance Policial. E Rui Veridiano viaja ao futuro em Mundo Deserto de Almas Negras para revelar uma São Paulo dominada pela elite negra, na qual a periferia é branca. Igualmente estranho é o universo ficcional de O Menino no Espelho, de Guilherme Fiúza Zenho.
Baseado no livro de Fernando Sabino, é sobre menino que vê seu reflexo no espelho adquirir vida própria. Da Argentina, fechando a competição de ficção, vem um concorrente forte, Todos Tenemos Un Plan, que é de 2012, mas nunca encontrou o caminho para os cinemas do País. Sua seleção por Rodrigo Fonseca tem o valor de um resgate. "É um filme de uma diretora que ainda não é conhecida no Brasil, Ana Pitaberg. Tem uma interpretação genial de Viggo Mortensen, que, para mim, é um dos maiores atores da história", diz o curador. "O que ele fez em Senhores do Crime (de David Cronenberg) é excepcional. O filme é sobre um homem cansado da sua vidinha em Buenos Aires e que assume a identidade do irmão, quando o outro morre. Só que o irmão está ligado ao crime e a vida dele sofre um baque. Viggo Mortensen representa em espanhol. Estou louco para ver o público compartilhar a emoção e o prazer de ver esse grande ator em mais uma interpretação antológica." A mostra principal ainda propõe a pré-estreia, fora de concurso, de Getúlio, de João Jardim, que estreia em 1.º de maio, em todo o Brasil.

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