Do Blog do Zanin 2: 50 Anos Esta Noite

Onde você estava naquela madrugada de 1° de abril de 1964, quando, 50 anos atrás, um golpe de Estado jogava o Brasil numa ditadura que durou 21 anos, segundo a cronologia mais aceita?
Cerca de 70% dos brasileiros não podem responder a essa pergunta pela simples e boa razão que não eram nascidos naquela data. Outros tantos, imagino, eram pequenos demais para ter consciência do que estava ocorrendo.
Portanto hoje, 50 anos após o golpe, apenas uma minoria da população o viu acontecer, pelo menos desde seu início. São testemunhas da história. Um número maior sofreu seus efeitos. Afinal, a ditadura durou muito tempo e atravessou gerações de brasileiros. Quem a viveu, no todo ou em parte, não a esquece. Tivemos nossa vida dividida pela metade, cortada, atravessada por essa fratura histórica do período autoritário.
Quem não viu de perto, se informe por livros e filmes. Ou conversando e ouvindo quem viveu. Afinal, a consciência da história é uma necessidade humana, tenhamos testemunhado os fatos ou não. Como dizia o João Saldanha, “eu não estive no incêndio de Roma, mas sei que existiu”. Claro que a sensação do ambiente, o frisson da época, a sua mentalidade profunda, só é evocável por quem a sofreu (e curtiu) na própria pele. Isso é intransferível. Ou quase. Pode-se tentar transferi-lo pelas palavras, ou pela arte, recursos simbólicos para a nossa memória.
Apesar de muito criança, lembro muito bem do ambiente da época. Ao contrário do que acontece hoje, respirava-se política. Moleque de menos de dez anos, recordo de perguntar aos adultos se valia a pena construir Brasília ao preço da inflação desencadeada no governo JK. Quando Jânio renunciou e Jango tomou posse, em regime de parlamentarismo ad hoc, o debate era sobre quanto tempo aquilo iria durar. Quando houve o plebiscito que decidiria pela manutenção do parlamentarismo ou volta ao presidencialismo, discutíamos o fato com amigos com a mesma paixão que dedicávamos ao futebol.
Havia aquela tensão no ar, falava-se abertamente que o governo queria levar o Brasil para o comunismo, a classe média tornara-se cada vez mais temerosa, vieram os comícios de Jango e as Marchas da Família. Na madrugada do golpe, meu pai acompanhava os acontecimentos pelo rádio. Morávamos em casas geminadas. Ao lado, vizinhos de parede, vivia uma família de gaúchos. Naquele pacato bairro da Aclimação, o vizinho e meu pai saíam à janela a toda hora para comentar entre si os fatos que ouviam pelo rádio. As mulheres se encolhiam de medo, pois parecia que uma guerra ia estourar a qualquer momento. Às tantas, esse vizinho sacou de um revólver e atirou para o alto, para comemorar. Provavelmente, celebrava a notícia de que seu conterrâneo havia deixado o Brasil e se asilara no Uruguai. Era a consumação do golpe.
O alívio no ambiente da classe média tornou-se visível. O perigo vermelho fora afastado. Marchas da Família, já marcadas, transformaram-se em marchas da vitória. Essa narrativa contaminava a todos. Muitos anos depois, encontrei no fundo de uma gaveta na casa de mamãe uma antiga redação escolar da época. O tema, imposto pela escola (eu estudava no venerando Instituto de Educação Caetano de Campos, na Praça da República), era algo sobre a necessidade do “Movimento Revolucionário de 31 de Março (sic)”. E lá, eu escrevia que o tal movimento fora necessário “para afastar o perigo comunista que rondava o Brasil.” De onde fora tirar semelhante ideia, tamanho clichê? Do meu meio ambiente, claro. Dos pais, mas também da escola, dos jornais, da TV. Essa ideia flutuava no ar com uma naturalidade impressionante. No seio da classe média era de uma evidência inquestionável.
Dois anos depois, tendo mudado para fazer o Científico no muito mais politizado Colégio Estadual de São Paulo (no Parque Dom Pedro II), e começado a militar no movimento estudantil secundarista, eu havia mudado completamente minha visão de mundo. O fato é que iniciar a juventude naquele tempo e ambiente era muito estimulante. Não havia reacionarismo que resistisse ao contato com o Cinema Novo, a bossa nova, os Teatros Oficina e Arena, os grupos de estudo que então se realizavam na Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antônia, que passou a ser o nosso point preferencial. Vivemos aqueles anos numa espécie de febre e, ainda que o regime fosse ditatorial, circulava entre nós um impulso de liberdade que fazia tudo parecer possível. Líamos, vorazmente, o que nos caía nas mãos, da grande literatura brasileira, como Graciliano Ramos e Jorge Amado, ao ensaísmo de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Líamos Marx e Engels, claro, e também Althusser, Marcuse, etc. O que conseguíamos digerir daquilo tudo? Não sei. Muitos anos depois, já maduro, voltei a esses textos e fiquei me perguntando o que um garoto de 16 ou 17 anos poderia tirar deles. Em todo caso, confusamente que fosse, esses autores, e o ambiente intelectual em que eram lidos, formavam em nós a base de uma matriz libertária e consistente. Isso ficou. Para toda a vida, creio eu.
A arte às vezes fazia mais pela nossa formação tanto ou mais que os textos. Ou talvez se complementassem. Para ficar apenas num exemplo, lembro de uma vez em que fui assistir à peça Arena conta Zumbi. Aquilo me causou tamanha impressão que posso dizer que saí do teatro transformado. Emoção e razão me diziam que havia um lado a escolher e era preciso fazê-lo sem qualquer hesitação. Poucas vezes depois tive a mesma impressão de que uma obra de arte te revira pelas entranhas e te obriga a repensar de maneira radical a vida e suas opções. O sentimento de indignação diante da opressão e da injustiça social ficou para sempre.
Tal era o ambiente nos anos 1960, cujo ponto culminante de radicalização talvez tenha sido aquela guerra na rua Maria Antonia entre a USP e o Mackenzie e, por fim, o desfecho no dia 13 de dezembro de 1968 com o Ato Institucional nº 5. Dali para a frente, tudo foi outra coisa. Era época de vestibular e, depois de uma passagem rápida pelo Objetivo, que achei muito careta, fui parar no Equipe, que exercia uma proposta pedagógica e política muito avançada para a época. O cursinho, ainda na rua Imaculada Conceição, em Higienópolis, contava com um time fantástico de professores, que preparava os alunos para valer, mas não esquecia que o vestibular era apenas uma prova. O fundamental era preparar cidadãos para a vida. E para a luta.
O fato é que com o fechamento do regime, e com a institucionalização do terror pós-AI5, as opções para a juventude tornaram-se muito restritas. Ou a luta armada (para alguns) ou o desbunde (para tantos outros) ou a indiferença dos que se decidiram tocar a vida de uma forma ou de outra, a maioria, acredito. Ser jovem, naqueles anos, era um pouco isso. Decidir se tomava um caminho que se suspeitava sacrificial e sem volta, se deixava o cabelo crescer e comprava uma guitarra elétrica, ou se se acomodava ao “sistema” e tentava tirar dele o que oferecia de melhor. Muitas vidas foram destruídas nessas escolhas forçadas.
Aqueles também foram anos de paranóia e cansaço. A censura e a tortura se institucionalizaram. Eram política de Estado. Como a imprensa estava amordaçada, vivia-se de boatos. Muitos de nós, sem serem diretamente perseguidos, resolveram sair do País. Era uma forma de sobrevivência psicológica para quem não via luz no horizonte e não aguentava mais assistir àquela alternância de rostos militares (devidamente vestidos à civil) no poder, que parecia se eternizar, em sucessão sem fim. Nós que tanto acreditáramos na História, passamos a duvidar dela e do seu movimento incessante.
Mas é claro que, apesar de tudo, algo se movia. E a maior prova era que o AI-5 seria revogado depois de dez anos de outorgado. Talvez o réveillon mais feliz da minha vida tenha sido o de 1978 para 1979, quando se extinguiu o Ato, signo de que o regime estava no fim. Com amigos e amigas queridos comemoramos até o sol raiar, na casa de um de nós, no Morro do Querosene, lá ao lado da USP. Os “hinos” eram duas músicas de Chico Buarque, Vai Passar e Apesar de Você, tocadas de modo alternado, no último volume, na altura da nossa euforia.
Não poderíamos imaginar que a ditadura passaria mesmo, mas apenas depois de uma negociação longa e complicada, que acabou na eleição de Tancredo Neves em 1985 pelo Colégio Eleitoral, e na posse de José Sarney, como todo mundo lembra. Minha geração entrou pela primeira vez numa cabine eleitoral para votar por um presidente em 1989…eleição que levou Fernando Collor ao poder. Desanimador, mas, enfim, a democracia estava de volta e talvez tivéssemos, como sociedade, aprendido a respeitar a vontade das urnas, mesmo quando ela não coincide com nossos desejos.
Na profusão de debates, entrevistas, matérias jornalísticas, lançamentos de filmes, livros e almanaques a propósito dos 50 anos do golpe, sempre é bom relembrar que, quaisquer que fossem os defeitos do governo Goulart, ele fora eleito pelo voto popular. Era legítimo, chegara ao cargo segundo as regras do jogo. Assumira com a renúncia do presidente Jânio Quadros, tivera de engolir um parlamentarismo mal ajambrado para assumir e submetera-se a um plebiscito para retornar ao regime presidencialista . Os atores políticos, civis e militares, que conspiraram contra seu governo, têm de conviver com esta realidade histórica: derrubaram um governo legítimo e colocaram uma ditadura em seu lugar. Neste ponto, não cabem duplas interpretações.
Em outros, sim. Mas, com a revisão propiciada pelos 50 anos de golpe, algumas coisas ficaram claras.
A mais importante, a meu ver, é sobre o caráter civil-militar do golpe. Com o endurecimento do regime, o cancelamento das eleições de 1965 e, em especial, após a decretação do AI-5, muitos apoiadores de primeira hora desceram do barco. Mas o sustentaram no calor da hora e fatos históricos não se apagam porque depois se tornam constrangedores. Foi assim, paciência. Não adianta posar de democrata depois. Democrata é quem aceita a vitória do adversário e espera sua vez. O resto é golpe. Mas a verdade inteira é que a cúpula militar da ditadura coabitou com extratos civis ao longo de todo o período. Alguns deles, como o empresário dinamarquês Henning Boilensen, colaboraram financeiramente para a manutenção da máquina da tortura, como mostra o filme Cidadão Boilesen. Não foi o único, lamento dizer.
Essa natureza simbiótica da ditadura aparece claramente na melhor bibliografia a respeito, como nos recém-lançados Ditadura e Democracia no Brasil, de Daniel Aarão Reis, e O Golpe, de Flávio Tavares. Realidade também documentada na tetralogia sobre o período escrita pelo jornalista Elio Gaspari, que sai agora em reedição ampliada.
Enfim, há uma boa bibliografia a respeito e uma filmografia não menos alentada. Escrevi dois artigos para o jornal, um sobre os livros e outro sobre os filmes dedicados ao golpe. São encontráveis neste blog.
Nos 50 anos do golpe, há uma espécie de consenso de que aquela foi a data inaugural de um período de trevas no País. Claro, alguns generais de pijama, e uns poucos intelectuais serviçais procuram relativizar responsabilidades e torcer a realidade dos fatos. Mas são minoria e pouco significativos. Ao contrário do que se diz, nem sempre a História é escrita pelos vencedores. Neste caso, pelo menos, não foi. Mal ou bem, revisou-se o período, apurou-se responsabilidades e, mesmo que timidamente, chegou-se aos torturadores, como no caso do incrível depoimento do coronel Paulo Malhães à Comissão da Verdade. Esse serviço, que nossos vizinhos na Argentina, Uruguai e Chile já fizeram com tanta limpidez, ainda nos custa realizar. Como nossa transição foi negociada, e não por ruptura, ainda sobrevivem entre nós essas aberrações. A tortura não foi exposta ao público em sua infame realidade, e subsiste, ainda, como prática cotidiana nas delegacias de polícia.
No entanto, como clima geral, já não se pensa em conspirar nos quartéis para a derrubada de um governo quando não se gosta dele. O instinto golpista não se extinguiu (faz parte, talvez, do DNA udenista das elites brasileiras), mas não encontra ambiente para se expressar livremente como meio século atrás. É um progresso, ainda que relativo. Talvez não tenhamos chegado a padrões democráticos razoáveis, mas pelo menos aprendemos que, muitas vezes, as conspirações acabam por devorar os conspiradores, o que serve como dissuasivo.
Nesta noite de hoje, quente e estrelada, recordo aquela outra noite, distante, de 50 anos atrás. Fazia frio, fazia calor? Não sei. Lembro das vozes excitadas, comentando as notícias aos brados, ao longo da madrugada. Aquele era um país em que medo e esperança conviviam e se confrontavam. Até que o medo triunfou. O que teria sido deste país caso o golpe não tivesse acontecido ou fosse abortado? Não sabemos e não saberemos. Mas é justo pensar que um enorme sofrimento teria sido evitado e o avanço social que se desenhava, causa principal do temor das forças conservadoras, não teria se detido por tanto tempo. Alguma coisa ali se insinuava, confusa talvez, mas muito promissora, até surgir o corte brutal da ditadura. Tudo o que veio depois, incluindo a nossa realidade atual, tem a ver com essa fratura histórica.
Não tenho saudade daquele tempo. Tenho saudade do jeito como enfrentamos aquele tempo.


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