Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#59: Macunaíma

  


MACUNAÍMA (Brasil, 1969). Há muito tempo sem ser distribuído nos Estados Unidos, onde havia sido um item cult, chamado Jungle Freaks, Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade é uma grande comédia política não reconhecida do cinema mundial. Foi o primeiro dos filmes do falecido realizador a ser restaurado, processo iniciado em 1999, tendo sido exibido na Mostra Classsics  do Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 2004. Agora que foi lançado em DVD na França, espera-se que sua reputação cresça. Baseado em uma importante rapsódia/romance modernista de mesmo título escrita por Mário de Andrade (nenhum parentesco), em 1926, este filme é uma obra-chave do "tropicalismo",  a terceira e última fase do Cinema Novo. Os realizadores foram forçados pela censura e um  regime opressor a serem indiretos em sua abordagem, e embora a alegoria e a ironia sejam utilizadas em Macunaíma, a paródia é sua estratégia central. A tradição do filme B brasileiro, comédia musical - chanchada - é recuperado através da caricatura e a redescoberta do grande comediante afro-brasileiro Grande Otelo que, sexagenário, interpreta o personagem-título, Macunaíma, enquanto bebê! O filme também satiriza, de forma cômica, a ilusória mescla social harmoniosa do Brasil, assim como sua "Aliança para o Progresso" com os Estados Unidos. De fato, a importância da versão fílmica de Macunaíma reside no quanto da seriedade de seu complexo cultural e codificação política pode ser simultaneamente apreciado estritamente como entretenimento. Andrade utiliza da metáfora do canibalismo como uma representação paródica e excessiva da resposta do Brasil a uma opressiva influência estrangeira, e através da justaposição e incongruência - por exemplo, um ator branco interpretando uma mãe dando à luz a uma criança de meia-idade negra, define o tom altamente carregado e irônico da peça.

Mário de Andrade, que foi antropólogo tanto quanto figura literária, combinou lendas ameríndias, africanas e ibéricas com os gêneros literários épicos (provenientes da Odisséia, comédia rabelaisiana, realismo grotesco e sátira para criar seu herói/anti-herói sincrético verdadeiramente brasileiro, Macunaíma. Embora retenha a maior parte dos elementos "tropicalistas" do romance, Joaquim Pedro, que costuma assinar seus filmes com apenas seu nome próprio, abandonou os atributos positivos de seu personagem central, justamente com seus poderes transformativos e rapsódicos. Umas poucas conexões mágicas e transformações ocorrem no filme através de montagem cruzada e câmera lenta, embora uma "geografia critiva" kulechoviana é algumas vezes conseguida através de se editar juntamente várias regiões do Brasil, como se fossem contíguas. (No final dos anos 10 Lev Kulechov, enquanto ensinava na Escola do Estado Soviético para a Arte Cinematográfica, conduziu uma série de experimentos de montagem. Em um desses, ao reunir imagens de arquivo filmadas em uma variedade de cidades soviéticas, foi capaz de "criar" uma cidade compósita, totalmente nova, com sua própria "geografia").

Mas a maioria dos elementos carnavalescos, fantásticos na louca colcha "tropicalista" do filme são encontrados nos figurinos coloridos, maquiagem, cenários e direção de arte, assim como na trilha sonora. Na primeira cena do filme, o ator euro-brasileiro Paulo José (que depois interpretará Macunaíma), está vestido de branco e pintado como uma mulher feia e masculinizada. Ele/ela fica de cócoras no chão de barro duro para dar à luz à moda índia (a Grande Otelo, que somos informados pelo narrador possuir seis anos quando nasceu!). Absurdamente caracterizado enquanto bebê, Otelo/Macunaíma possui dois irmãos mais velhos, um branco, Maanape, e outro negro, Jiguè. Maanape, inicialmente vestindo preto, executa rituais estranhos - tais como carregar uma grande pedra, que marca-o como nordestino, místico, talvez mestiço, enquanto Jiguê, acompanhado de uma mulher jovem, Sofara, vestindo um saco de farinha da Aliança Para o Progresso e uma cueca vermelha, é um gigolô. Ficamos cientes que Macunaíma se alimenta de formigas e dorme a maior parte do tempo, "acordando somente quando escuta a palavra 'dinheiro' ou quando a família o banha no rio, nu". Todos dormem em redes. 

O acúmulo de inversões parodia a mistura cultural e racial brasileiras e inicia a crítica do filme ao desequilíbrio de poder no país (que encoraja a mentalidade de cão comendo cão). Em três ocasiões Otelo/Macunaíma é tornado branco, duas por um cigarro mágico de maconha e uma por uma fonte de água natural (que seca tão logo Jiguê tenta usá-la). Os três irmãos viajam à cidade, onde Macunaíma (agora interpretado por José) encontra a terrorista revolucionária Ci (Dina Sfat). Os papéis domésticos são invertidos, com Macunaíma permanecendo em casa (a maior parte do tempo dormindo em sua rede), enquanto Ci "vai ao trabalho" de plantar bombas. É ele que repousa após Ci dar à luz (a outro Grande Otelo infante). Quando a mãe e a "criança" são acidentalmente mortos por uma das bombas dela, Macunaíma cai nas garras de um grotesco magnata, Vanceslau Pietro Pietra - "pedra" tanto no masculino quanto no feminino - interpretado por Jardel Filho. Vanceslau mantém pessoas em gaiolas e cozinha humanos em sua piscina, transformado em caldeirão de feijoada - a representação mais acentuada de Macunaíma do canibalismo como uma metáfora da ambição e desequilíbrio econômico do Brasil. De fato, após Macunaíma retornar à casa, para uma agora evidente região amazônica, onde as únicas cores são aquelas da bandeira brasileira - verde e amarelo - ele efetivamente comete o suicídio ao pular em uma lagoa em busca  da enganosa deusa Uiara (Maria Lúcia Dahl). Sangue emerge da enlameada água (amarela), escorrendo pela jaqueta verde de Macunaíma, que flutua na superfície, enquanto um hino patriótico  zomba da ação na trilha sonora. Neste, o último plano do filme, a própria consideração de Andrade sobre o seu filme é claramente representada: "Macunaíma é a história de um brasileiro devorado pelo Brasil."

Texto: Rist, Peter H. The Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, pp. 380-2.

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