Filme do Dia: A Mulher da Neve (1968), Tokuzô Tanaka

 


A Mulher da Neve (Kaidan Yokojirô, Japão, 1968). Direção Tokuzô Tanaka. Rot. Adaptado Fuji Yahiro, a partir do conto de Lafcadio Hearn. Fotografia Chikashi Makiura. Música Akira Ifukube. Montagem Hiroshi Yamada. Dir. de arte Akira Naitô. Com Shiho Fujimura, Akira Ishihama, Machiko Hasegawa, Taketoshi Naitô, Mizuho Suzuki, Fujio Suga, Yoshirô Kitahara, Sachiko Murase, Tatsuo Hananuno.

Em meio às comemorações discretas de um escultor (Hananuno) e seu jovem assistente, Yosaku (Ishihama) pela conclusão de uma obra, a qual imagina driblará os séculos, o assistente observa o escultor ser morto pelo espectro a surgir do meio da rigorosa nevasca a acometer os arredores da cabana. A mulher espectral o livra da morte por ser jovem e belo, desde que não venha nunca a comentar sobre o testemunhado. Tempos depois, ele sonha com o ocorrido, mas não revela nada como prometido, e desconversa para quem o criou desde pequeno, a viúva do mestre. Numa noite de chuva, repentinamente quem se abriga ao telhado onde moram os dois é Yuki (Fujimura).  A morte da velha, após vilmente ser açoitada em público, pelo intendente,  não se dá sem antes moribunda confirmar os laços matrimoniais de Yosaku com Yuki. Yosaku é convidado a se sagrar o novo mestre, embora uma vez mais o intendente local se irrite com alguém tão inexperiente ser o responsável pela feitura de um ídolo de referência. Por influência desse, Yosaku é agora provocado a produzir uma imagem mais perfeita em comparação a que será produzida por um famoso mestre de carreira mais longa, Gyôkei (Suzuki). A competição não é exatamente igualitária, pois Gyôkei possui aprendizes o auxiliando na tarefa, enquanto Yosaku, de recursos materiais bem mais modestos, não. Yosaku tem subitamente sua residência invadida por oficiais e estes o ameaçam leva-lo preso, pela acusação do intendente de ter cortado uma árvore pertencente a propriedade do mesmo, embora Yosaku afirme ter este lhe dado a permissão. A única chance de se livrar da prisão  será ou o pagamento de 3 moedas de ouro, sabendo ele não possuir tal quantia, ou que Yuki passe a servir ao intendente, há tempos atraído por ela, e não mais retorne à casa do marido. Yuki promete pagar a quantia exigida e ela ganha o prazo de cinco dias para fazê-lo, indo se encontrar com o superior do intendente, em outra cidade. Yuki consegue furar as exigências protocolares e ter acesso a casa do superior por conta da filha do casal se encontrar em estado de saúde crítico. Yuki se diz filha de doutores. Ela faz o impossível, salvando a criança e recebendo o agradecimento do casal.  Quando Yosaku é novamente assediado pelos oficiais, às vésperas do prazo da entrega do ídolo, sua mulher traz as moedas de ouro recebidas pela cura. A imagem realizada por Gyôkei, banhada a ouro, desagrada o sacerdote, por seu rosto se encontrar demasiado brilhante e pouco ou nada compassivo. O intendente consegue ficar a sós com Yuki e tenta violenta-la, mas o fantasma da neve emerge, deixando-o desesperado e o matando, assim como a seus homens. A sacerdotisa local acusa Yuki pelas mortes e diz ao marido que ela não é deste mundo. Yosaku, a princípio não desconfia, mas depois se lembra do episódio da morte de seu mestre, recontando-o para Yuki e quebrando com a jura feita para sua sobrevivência.

Sem dúvida não há nem de longe a sutileza e ambiguidade da aparição espectral de um filme de Mizoguchi, e se deve levar em conta aqui o flerte com a fantasia nesta produção tem propósitos distintos daquele. Chama a atenção a forma de deslocamento do espectro, flutuando mais apropriadamente que pisando em solo. Nessa linha, talvez nada ser melhor sucedido, que a virada de olhos de Yuki quando atingidas pelas chamas do mal. Eles não viram, mas atravessam horizontalmente suas órbitas em grande efeito, auxiliados que são pela iluminação, e talvez sua aparição mais assombrada nem seja a que também se destaca mais as lentes em seus olhos. E o seu prólogo é magistral, pois tanto pode ser lido como literal como uma versão onírica dos episódios vivenciados por Yosaku, sendo a fantasia o elo de ligação. Como se escutasse o espectador, repentinamente o filme apresenta em poucas linhas de diálogo o cerne da cena previamente assistida, ressaltando sua dimensão fabular. E quando Yuki retorna à casa, ela já é praticamente um espectro como o que Yosaku observara tempos atrás, chegando a por frações de segundos se assustar. Estilisticamente usando e abusando do zoom, técnica em seu auge à época, uma das aproximações da concepção de “imagem”, traduz a  personalidades de seus realizadores. Tal como um super-herói Yuki vivencia sua dupla personalidade, embora haja momentos nos quais a sua transformação em cópia de uma mortal demore mais a se realizar, e o próprio marido percebe sua aparência demasiado pálida.  Quando se pensa a tradição japonesa, mesmo ocorrendo recorrências com o cânone ocidental, como a figura da mulher associada a uma dubiedade moral, tem-se uma solução deveras incomum no caso em questão, sobretudo quando se coloca igualmente em jogo o horror cinematográfico ocidental –  é uma mulher a assustar um homem e, sobretudo, é uma personagem repleta de compaixão apenas quando mulher de Yosaku, pois mata indiscriminadamente homens sem vínculo maior com o seu caráter, seja o mestre de Yosaku, de moral aparentemente impoluta e o maquiavélico intendente. Curiosamente as duas “mortes” (a do mestre, depois a da versão do espectro da neve)  terrena demarcam também duas mudanças substanciais na trajetória de Yosaku, primeiro abrindo caminha para ele se tornar precocemente mestre, depois – imagina-se – provavelmente o sagrando como mestre a ter um ídolo consagrado por diversas gerações, como fora o caso de seu antecessor. E como não evocar o trauma edipiano da despedida na neve de Cidadão Kane ao final? Tanaka foi diretor de segunda unidade para filmes de Kurosawa, como o clássico Rashomon, chegando a dirigir cerca de meia dúzia de filmes anos seguidos em meados dos 1960. O conto de  Lafcadio Hearn já havia sido adaptado três anos antes por Masaki Kobayashi, como um dos episódios de As Quatro Faces do Medo.|Daiei para Daiei. 79 minutos.

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