Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#137: Chanchada




 CHANCHADA. A versão do cinema brasileiro dos filmes de comédia musical, a chanchada foi o gênero popular mais duradouro da indústria doméstica, nos anos 30, 40 e 50. Originalmente usada pelos críticos para criticar os enredos tipicamente frágeis, baixos orçamentos e limitações técnicas deste gênero, o termo chanchada (gíria para "lixo"), pode ser proveniente de pachoucada (o que significa algo incoerente), foi eventualmente adotadao pela indústria para promover sua mistura única de comédia sem sentido e música popular para um público massivo que, senão, preferia os produtos hollywoodianos. 

O primeiro filme sonoro comercialmente bem sucedido foi um musical, Coisas Nossas (1931,  Wallace Downey), e muitas características do gênero já se encontravam presentes. A história foi grandemente surrupiada  de The Broadway Melody (Melodia da Broadway, 1929, Harry Beaumont), iniciando uma tradição de imitação de musicais hollywoodianos. Ao menos tão importante quanto isso foi o musical de bastidores, com as canções apresentadas como performances de palco diegéticas que não possuíam conexão com a trama do filme. Mesmo após o musicla hollywoodiano evoluir para sua forma clássica, a chanchada se ateve às tramas de bastidores e interpretações no estilo de revistas. Além do que, o elenco era recrutado entre estrelas do rádio (destacadamente Francisco Alves, um croner que apareceria em muitas chanchadas futuras) e o teatro de revista (o vaudeville brasileiro, fortemente dependente de palhaçadas e diálogos cômicos influenciados pelo circo.

Uma diferença maior é que enquanto Coisas Nossas foi realizado em São Paulo, a maior parte das futuras chanchadas seria realizada e ambientadas no Rio de Janeiro. Esta nova ambientação acrescentou elementos cruciais ao gênero, emergindo a influência do carnaval da cidade. Os primeiros musicais produzidos no Rio  eram desdobramentos de documentários mudos sobre o carnaval. A chegada da tecnologia sonora foram o desenvolvimento de documentários mudos sobre o carnaval. A chegada da tecnologia sonora tornou possível incluir as canções famosas da festa, e o primeiro documentário sonoro, O Carnaval Cantado de 1932 no Rio, apresentando uma jovem Carmen Miranda, foi previsivelmente popular. Foi um pequeno passo pegar as canções carnavalescas, e mesmo algumas imagens de arquivo de cortejos verdadeiros, e mesclá-los com tramas ficcionais, começando com A Voz do Carnaval (1933, Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro), apresentando novamente Miranda, o que levou a uma série de musicais carnavalescos dos Estúdios Cinédia. Além da música e ambientação, o carnaval proporcionava o sabor de confusão total do gênero. Assim como a festa anual se caracterizava pelo estilo subversor de classe, ao estilo "rei por um dia", as tramas das chanchadas articulavam tipicamente em alguém das classes mais baixas se misturando com a alta sociedade, enquanto os trajes tradicionais mascarados do carnaval encontravam eco no recorrente tropo da identidade equivocada dos filmes. Outro importante legado foi o nível de exagero carnavalesco da comédia nonsense. E é importante observar que enquanto a comédia da confusão total brincava com as subversões de classe, raça e gênero (o travestismo era outra fonte de humor), o intento dos filmes era mais escapista que genuinamente subversivo. Ainda que as chanchadas fizessem graça da elite social e cultural, a mensagem final para seu público majoritariamente popular, é que eles deviam se contentar com a sua sorte.

Alô, Alô Brasil (1935, João de Barro, Downey e Alberto Ribeiro) foi um grande sucesso que solidificou as convenções de um ambiente carnavalesco, interpretações de canções populares fotografadas por uma câmera fixa do ponto de vista de um assento em uma plateia teatral (frequentemente em uma tomada), e um enredo tênue envolvendo uma dupla de irmãs cantoras com o objetivo comum de se tornarem estrelas do rádio. O filme foi também notável como plataforma para as  estrelas em ascensão Carmen Miranda e sua irmã Aurora. Estudantes (Downey, 1935) variou a forma ligeiramente ao ambientar o enredo em uma faculdade mais do que no carnaval, mas ainda envolvendo a montagem de um espetáculo, para justificar os números musicais. A Cinédia seguiu o que é geralmente considerado a primeira chanchada completa e um dos filmes de maior sucesso da década, Alô, Alô Carnaval (1936,. Gonzaga). Este filme trouxe com ele muitos dos elementos discutidos, incluindo o humor pastelão, a comédia sem sentido envolvendo travestismo e sátira da elite cultural (neste caso, a música clássica), uma série de intérpretes populares cantando sambas de carnaval e sucessos do rádio, um ambiente carnavalesco e os bastidores de uma trama de rádio envolvendo identidade equivocada, e acrescentado um humor auto-referencial que parodiava a ausência de recursos e crueza técnica do filme. No que se tornaria outra marca registrada do gênero, isto foi realizado contrastando a simplicidade brasileira com a pretensiosidade dos estrangeiros (inicialmente portugueses, mas depois tipicamente americanos), enquanto afirmação de identidade nacional. O filme também apresenta o veterano do teatro de revista Oscarito em um papel coadjuvante. Possivelmente o intérprete mais identificado com o gênero, sua persona era tanto de um oprimido homem comum, muitas vezes perdido diante do sofisticado ou do moderno, que acabaria mudando sua vida em um golpe de sorte, e ele continuaria a interpretar variações do mesmo personagem em muitos filmes. 

Duas chanchadas-chaves da Cinédia que se seguiram foram Bonequinha de Seda (1936, Oduvaldo Vianna), um enorme sucesso que levou a uma série de filmes com cenários não carnavalescos e Samba da Vida (1937, Luiz de Barros), apresentando um erro classicamente carnavalesco de um ladrão confundido com uma figura da alta sociedade. 

Ainda que a Cinédia tenha sido o estúdio mais identificado com o gênero nos anos 30, não foi o único produtor de chanchadas. A maioria eram imitações da fórmula da Cinédia, mais algumas abriram novas sendas. Cidade-Mulher (1936), foi o primeiro musical brasileiro a fazer uso somente de canções compostas para ele e foi também pioneiro em apresentar uma paródia de Hollywood. Wallace Downey, o americano que se encontrava centralmente envolvido no desenvolvimento do gênero, abandonou a Cinédia após Alô Alô Carnaval! e montou uma parceria com a Sonofilmes. Seu primeiro sucesso lá, enquanto produtor, foi João Ninguém (1937, Mesquitinha), mais notável por apresentar o jovem cômico afro-brasileiro Grande Otelo, que iria formar um popular par cômico com Oscarito nas chanchadas dos Estúdios Atlântida dos anos 40 e 50. 

O maior sucesso de Downey foi Banana da Terra (1939, Ruy Costa), um musical carnavalesco famoso pelo vestido de baiana de Carmen Miranda, usado pelas pobres vendedoras de frutas na Bahia e cantando a canção de Dorival Caymmi "O Que é Que a Baiana Tem?" Miranda já era uma estrela e não particularmente associada com a longa tradição do teatro de revista (também comum nos trajes carnavlescos) de brancas vestidas de baianas, de alguma maneira análoga à tradição americana de cantores brancos performarem com maquiagem negra que remonta aos espetáculos de menestreis. No entanto, a impressão causada foi grande o suficiente para levá-la a Hollywood (Banana da Terra foi seu último filme brasileiro) tornando o traje de baiana sinônimo não somente de Miranda mas, aos olhos do mundo, da cultura brasileira em geral. E é irônico, porque enquanto as chanchadas apresentavam intérpretes afro-brasileiros e se apropriavam fortemente da cultura afro-brasileira (particularmente a música), geralmente endossavam as atitudes racistas dominantes do período. Os filmes algumas vezes apresentavam piadas e dizeres raciais e grandemente subrepresentaram a presença não branca em sua versão do Rio de Janeiro. Apesar  uma das maiores estrelas do gênero ter sido Grande Otelo, ele geralmente interpretava personagens joviais e infantilizados, em parceria com o cômico branco Oscarito, e nunca o protagonista romântico ou heroico em uma chanchada. Também típico foi seu nome artístico fazer referência a sua cor, o que também era verdade para outros cômicos afro-brasileiros, tais como Chocolate e Blecaute. Do mesmo modo, nenhuma atriz afro-americana interpretou um papel principal nestes filmes, com personagens que, de outra forma, seriam codificadas como "negras", mas interpretadas por atrizes brancas (por exemplo, em Samba em Brasília [1961, Watson Macedo] a bastante branca Eliana Macedo interpreta uma moradora de favela especialista em macumba. Embora os números musicais frequentemente incluam dançarinos afro-brasileiros, seu papel era tipicamente destacar os artistas brancos em primeiro plano. 

Houve três maiores desenvolvimentos do gênero nos anos 40. O primeiro foi a criação da Atlântida Cinematográfica, em 1941, que se tornaria o estúdio mais associado com as chanchadas, ainda que outros estúdios (inclusive a Cinédia) continuassem a produzir as suas próprias ao longo dos 40 e dos 50. Mesmo a Atlântida se lançando com intuito em realizar filmes sérios, o estúdio rapidamente voltou-se às formulas musicais relativamente baratas, para gerar lucros. A primeira chanchada da Atlântida foi Tristezas Não Pagam Dívidas (1944, José Carlos Burle e Ruy Costa), um grande sucesso, fazendo o par de Grande Otelo com Oscarito no primeiro de seus 13 filmes juntos. A nova dupla cômica retornou para solidificar este sucesso em Não Adianta Chorar (1945, Watson Macedo), e o maior sucesso da década, Este Mundo é um Pandeiro (1946, Macedo). Estes filmes estabeleceram a fórmula  do teatro de revista no estilo pastelão e diálogos cômicos da Atlântida; assim como trama de bastidores, tanto imitação quanto paródia dos musicais hollywoodianos, comédia carnavalesca centrada na inversão de classe e identidade equivocada, assim como o uso de boates e cassinos como ambiente. 

A segunda mudança importante ocorreu em 1947, seguindo a aquisição da Atlântida pelo proprietário de uma rede de cinema, Luiz Severiano Ribeiro. Pela primeira vez no cinema brasileiro, um estúdio era equipado com uma rede de distribuição sólida para se contrapor a inundação de importações hollywoodianas, e o público para as chanchadas ampliou-se consideravelmente. Um possível resultado disso, enquanto atração para um público não urbano, nas externas do Rio de Janeiro, particularmente a área da praia de Copacabana, torna-se mais proeminente nos filmes. Três das mais populares chanchadas, todas estreladas por Grande Otelo e Oscarito, seguiram-se: É Com Este que Eu Vou (1948, José Carlos Burle), E O Mundo Se Diverte (1949, Macedo) e O Caçula do Barulho (1949, Riccardo Freda).

O terceiro maior desenvolvimento teve lugar em 1949, quando uma mudança nas leis de direitos autorais tornou mais caro fazer uso das canções de carnaval nos filmes. Até esta época, uma chanchada típica apresentaria de dez a doze canções, mas isto decresceu, enquanto mais ênfase foi posta na trama. O filme arquetípico nesta mudança de estilo foi Carnaval de Fogo (1949, Macedo), novamente estrelado por Grande Otelo e Oscarito, com a perene heroína das chanchadas Eliana Macedo, numa história que enfatizava lutas e perseguições de carros (que rapidamente se tornariam destaque no gênero) embora mantendo aspectos familiares tais como o ambiente da boate, a inversão carnavalesca, a trama de bastidores e os números musicais apresentados em um palco e não integrados no enredo. Signficativamente, nenhuma destas canções foram provenientes do carnaval, e uma inovação das chanchadas dos anos 50 foi a crescente diversidade dos estilos musicais em um espetáculo. 

A crescente importância do enredo nos filmes também foi associada a uma leve sátira política e o aumento de referências aos problemas da modernidade, a refletirem o ceticismo com as políticas pro-desenvolvimentistas do governo. As chanchadas permaneceram populares ao longo da década, e dentre as mais lembradas estão Aviso aos Navegantes (1950, Watson Macedo), Carnaval Atlântida (1952, Burle e Carlos Manga), Colégio de Brotos (1956, Manga) e De Vento em Popa (1957, Manga). Ao lado da sátira política, o alvo maior de muitas chanchadas do período foi Hollywood. Carnaval Atlântida apresentava um produtor visitante chamado "Cecílio B. de Milho", enquanto diversos filmes foram paródias diretas de sucessos de Hollywood, notadamente Nem Sansão Nem Dalila (1954, Manga), que zombava do épico de 1949 Samsom and Delilah (Sansão e Dalila) de DeMille, assim como do prévio presidente brasileiro Getúlio Vargas e Matar ou Correr (1954, Manga), que parodiava High Noon (Matar ou Morrer, 1952, Fred Zinnemann). A despeito da popularidade duradoura de estrelas como Grande Otelo, Oscarito e Eliana Macedo, e a emergência de Carlos Manga enquanto diretor prolífico e criativo, o crescente acesso à televisão roubou o público da chanchada, e o gênero rapidamente decaiu e eventualmente desapareceu, substituído no final dos anos 60 pela pornochanchada. Mas na sua época, a despeito de suas imperfeições, ofereceu um entretenimento de diversão e escapismo melódico a encontrar um público genuinamente massivo no Brasil, particularmente entre os pobres, único na história cinematográfica do país.  Ver também BENGELL, Norma; BRESSANE, Júlio; SGANZERLA, Rogério. 

                                                                                              _______David Hanley

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 134-38.

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