Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#55: Eduardo Coutinho

 


COUTINHO, EDUARDO. (1933-2014). Ainda que tenha dirigido menos de 15 filmes para o cinema em uma carreira de meio século, Eduardo Coutinho é geralmente considerado como o maior documentarista do Brasil. De fato, foi um dos documentaristas mais inovadores do mundo. Como muitos outros de sua geração, começou a trabalhar em filmes ao início do movimento do Cinema Novo. Foi gerente de produção para o filme em episódios da União Nacional dos Estudantes (UNE), Cinco Vezes Favela (1962), e depois viajou ao Nordeste com o grupo de estudantes do Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE, para realizar um curta documental. Entre os eventos filmados, encontrava-se os protestos contra o assassinato do líder da liga camponesa, João Pedro Teixeira. Em 1963, Coutinho decidiu realizou um docudrama em longa-metragem, estrelado pela viúva de Teixeira, Elisabete,  sobre os esforços das ligas e sua morte, mas a produção teve de ser interrompida quando os militares se apossaram da região. Praticamente ao mesmo tempo do golpe militar de 1964, Cabra Marcado para Morrer foi interrompido. De forma notável, em 1981, munido com uma cópia em 16 mm de suas filmagens originais, buscou os sobreviventes das lutas camponesas, incluindo Elisabete e sua prole dispersa. O filme resultante, intitulado em inglês Twenty Years Later (1984), propiciou que seus tematizados fossem recuperados como "protagonistas de seu próprio drama" e os estabeleceu como personagens importantes da história política brasileira. (Para uma análise mais perspicaz, v. Timothy Barnard [1996, pp. 199-201]). No período entre um filme e o outro, Coutinho escreveu dois longas para o Cinema Novo, A Falecida (1965) e Garota de Ipanema (1967), e escreveu e dirigiu um longa de ficção, O Homem Que Comprou o Mundo (1968). Os anos 70 foram os mais estéreis, mas co-roteirizou dois filmes de destaque, Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) e Lição de Amor (1975).

Desde o sucesso crítico internacional de Cabra Marcado para Morrer - ganhou o FIPRESCI e o Interfilm, no fórum dos cinemas novos, no Festival de Berlim de 1985 - o status de Coutinho como documentarista de nível internacional tem crescido. Em 1987, Coutinho e uma pequena equipe permaneceram duas semanas filmando em uma favela do Rio de Janeiro, resultando em Dona Marta - Duas Semanas no Morro. Visto hoje, quando todos escutam sobre a violência, o crime e as drogas nas favelas do Rio, esta obra digital é um retrato notavelmente positivo de pessoas vivendo na pobreza. Inicia com uma série de planos breves de pessoas sendo indagadas o que fazem para viver, enquanto descem as escadas de suas casas e termina à noite, com outras pessoas voltando de seus locais de trabalho. Testemunhamos muitos exemplos de encontros - grupos comunitários, reuniões religiosas - vemos e escutamos músicas tocadas (todo o material aparentemente composto por residentes do Santa Marta), e somos acolhidos nas casas, sempre com dignidade. A cena de um residente profissional de saúde reclamando a um policial sobre o tratamente desnecessário da juventude por parte da polícia é regularmente cortada, ainda que não vejamos qualquer transação com drogas, embora os entrevistados queixem-se de que os policiais estão sempre procurando por drogas. A abordagem de Coutinho é tão otimista, que algusn moradores dizem que não pretendiam morar em nenhum outro lugar!

De Boca do Lixo, aonde os subproletários que vivem em um lixão nos arredorese do Rio são possibilitadas serem ouvidos até Santo Forte (1999) e Babilônia 2000 (2000), ambos focando nas vidas  das pessoas que habitam as favelas do Rio, Coutinho desenvolveu suas estratégias de entrevista filmadas digitalmente a incluírem comentários reflexivos dos tematizados sobre a intrusão da equipe de filmagem. Em Boca do Lixo, os entrevistados são consistentemente indagados se está ok para eles serem entrevistados, identificando colegas de trabalho através de fotografias, ocasionalmente observamos a câmera e a equipe e frequentemente escutamos as perguntas de Coutinho, e ao final do filme alguns dos filmados observam as filmagens em uma televisão grande montada ao ar livre. Nas palavras de Verônica Ferreira Dias, os "filmes de conversação" de Coutinho reinstauram o equilíbrio entre o realizador e os sujeitos filmados (Ver Verônica Ferreira Dias - "A Cinema of Conversation - Eduardo Coutinho's Santo Forte e Babilônia 2000" [Nagib, 2003: pp. 105-117]).

O próximo documentário longo de Coutinho, Edifício Master (2002), foi ainda mais complexo. Coutinho e sua equipe entrevistaram 37 moradores de um prédio de apartamentos de doze andares, a apenas uma quadra da praia de Copacabana. Subindo de classe social, Coutinho permite uma vez mais que os sujeitos sejam francos e confrontativos, revelando muito sobre suas vidas individuais e coletivas e os espaços que habitam. A primeira moradora havia vivido 49 de seus 50 anos no edifício (em mais de dez apartamentos diferentes), e dela e de outros escutamos sobre a história do prédio e como foi utilizado para ser um lugar selvagem para viver. Todas as idades são entrevistadas e passamos a compreender, através da visão de mundo de Coutinho, que todos são interessantes. Surpreendentemente, a câmera move-se por um corredor e entra no apartamento, acompanhada de palavras de acolhimento, mas nunca se aventura fora. Talvez porque escutamos muitos comentários dos moradores do quão Copacabana é uma área perigosa, e Coutinho não deseja ir lá (para comprovar ou desaprovar tais considerações), porque deseja manter sua postura humanitária. Começando com Santo Forte, os documentários digitais de Coutinho regularmente angariaram entre três e cinco dos principais prêmios brasileiros a cada ano, e Edifício Master continuou a tendência - também recebeu uma menção especial para documentários no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, de 2003.

Com Peões (2004) e O Fim e o Príncipio (2005), Coutinho continuou com sua estratégia de entrevistas digitais, mas com algumas poucas diferenças. Ambos os filmes dizem respeito à memória e ambos se aventuram no país. Os primeiros sujeitos de Peões foram entrevistados no Ceará, no Nordeste do Brasil, e sabemos por eles que migraram para São Paulo, especificamente São Bernardo do Campo, para trabalharem na indústria automobilística. Gradualmente compreendemos que o filme é sobre Luís Inácio Lula da Silva, o novo presidente do Brasil, que havia liderado o sindicato dos metalúrgicos  em greves que foram consideradas completamente ilegais pelas leis militares, no final dos anos 70. Incomumente, em se tratando de Coutinho, ele emprega imagens de arquivo de outros documentários e mostra claramente suas tendências políticas na construção de um coro de apoio às memórias dos metalúrgicos. O Fim e o Príncipio marca uma nova orientação para o diretor, que viaja a outro estado nordestino, Paraíba, não sabendo o que irá encontrar nas terras ressecadas do sertão. A equipe primeiro encontra uma assistente social, com a intenção de entrevistar seus clientes, mas dentro do filme testemunhamos a mudança de ideia de Coutinho, levando-o a entrevistar muitos membros da família da jovem, muitas delas bastante idosas, quase todas agradecendo a Deus por ainda se encontrarem vivas. (A região sofre regularmente com a seca.)

Com Jogo de Cena (2007) e Moscou (2009), a obra de Coutinho dá uma guinada experimental. Nessas duas obras o diretor explora as performances de atores diante da câmera. Ele põe um anúncio no jornal, convidando mulheres de mais de 18 anos a comparecerem ao Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, para revelarem suas histórias de vida diante da câmera. Algumas dessas foram chamadas para o filme, e alguns roteiros foram reencenados para a câmera por outras mulheres e umas poucas atrizes profissionais. Há não ser que seja brasileiro e familiarizado com Marília Pera e Fernanda Torres, é difícil saber quais histórias são "reais" e quais não. Portanto, enquanto público, focamos nas faces das mulheres individualmente e as palavras que falam e vivenciamos as emoções e pensamentos de suas histórias de vida, sem necessariamente julgarmos sua veracidade. Moscou vai ainda além na exploração da performance. Após uma recitação sobre a família russa, acompanhada por fotografias, testemuhamos Coutinho e um diretor de teatro escolhido convidarem os atores a uma ampla sala, onde cada um possui uma cópia impressa da peça na mesa onde se sentarão. Ainda que a peça se supõe seja anônima, é rapidamente identificada como Tri Sestry (Três Irmãs), de Anton Tchecov,  e o grupo fica sabendo que possui três semanas para ensaiá-la. O "documentário" consiste de várias encenações de umas poucas cenas da peça em cenários estranhos. Uma cena envolvendo as três irmãs é interpretada em um camarim, com elas sentadas diante de espelhos: uma "cena de amor" ocorre em uma sacada, onde os técnicos normalmente operaram a montagem das luzes; as vezes mais de uma cena é ensaiada no mesmo espaço, e observamos a câmera e um homem com um boom; a maioria das cenas envolve nostalgia por Moscou, e percebemos fotografias presas às roupas. Mais que representar a peça de Tchecov, Coutinho opta por ser muito mais abstrato em sua exploração da memória, nostalgia, e natureza da performance. 


Texto: Rist, Peter H.  Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, pp. 188-91.

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