Filme do Dia: O Desafio (1965), Paulo César Saraceni

O Desafio (Brasil, 1965) Direção e Roteiro: Paulo César Saraceni. Fotografia: Guido Cosulich. Montagem: Ismar Porto.  Cenografia: José H. Belo. Com: Isabela, Oduvaldo Vianna Filho, Gianina Singulani, Sérgio Britto, Luiz Linhares, Joel Barcellos, Hugo Carvana, Maria Bethânia.
        Ada (Isabela) e Marcelo (Filho) se encontram em um carro mudos. Pouco a pouco iniciam um diálogo. Marcelo demonstra sua insatisfação com o rumo que as coisas vão tomando no país após o golpe militar. Fala de um colega  seu da redação da revista em que trabalha que foi despedido e quando procurou o motivo, foi acusado de ser subversivo. Ada procura encontrar o motivo da crescente inquietação de Marcelo no trabalho, mas este descarta dizendo que se encontra entusiasmado com o mesmo. Logo ficamos sabendo que Marcelo é amante de Ada, enquanto seu marido é o empresário Mário (Britto), que se encontra preocupado com a crescente insatisfação da esposa, não se importando com suas amizades de esquerda, desde que não se torne influenciada. Ada diz que está cansada do mundo em que vivem, das festas e das pessoas vazias. Marcelo se irrita com o rumo que as discussões se encaminham na revista. Em um novo encontro com Ada, aborrece-se com o único motivo de preocupação para ela: ter que revelar a situação de ambos para o marido. Após recordarem momentos de um passado feliz em comum, necessitam retornar por força à difícil situação atual por intervenção de Marcelo. A  insensibilidade de Ada para a consciência política que lhe revolve as entranhas, faz com que Marcelo decida por abandoná-la, acreditando serem suas preocupações fúteis e burguesas. Ada, a contragosto, concorda. Visita o marido em seu trabalho e confrontada face a face com os trabalhadores que a fazem manter o padrão de vida em que vive, sente-se extremamente culpada. Marcelo, por sua vez, desafoga suas magóas em um bar com um colega da revista, que o vê como um idealista com suas pretensões de mudar o mundo. Convida-o para dormir em sua casa. Ao chegarem, são recepcionados por sua esposa, que ao oferecer uma bebida para Marcelo tenta seduzi-lo. Ao perceber que o jogo de sedução conta com a cumplicidade do marido, Marcelo abandona a casa. Encontra uma criança pobre no alto de uma escadaria, reflete um pouco, e continua.
       Corajosamente Saraceni apresenta um retrato explícito e sem maiores alegorias da preocupação de um certo setor da esquerda nacionalista pós-Golpe de 1964 com a crescente atmosfera repressiva, lidando diretamente com o seu próprio universo de cineasta e intelectual - cartaz de Gláuber no quarto e Villa-Lobos na trilha evocando o recente Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), revista Cahiers du Cinema sobre uma mesa, o show Opinião com Maria Bethânia e outros artistas - diferentemente da obra do próprio Gláuber. Ao discutir, por exemplo, com Ada no início do filme, sobre o colega que foi despedido, Marcelo afirma o sentimento de absurdo e injustiça com que ele e Ada perceberam o fato acabe por se naturalizar com o passar do tempo. Ao afirmar para Ada, quando do rompimento, que “a fase do otimismo leviano acabou mesmo”, Marcelo sintetiza a ressaca dos intelectuais de esquerda ao verem seu sonho naufragar com o poder na mão dos militares, compreensão que só seria  melhor trabalhada por Gláuber em Terra em Transe (1967). Porém, contrariamente a Gláuber, o filme (e Marcelo) se apresenta contraditório. Quando Marcelo e Ada relembram seus melhores momentos juntos, e um flashback nos leva a passear pelas ruínas de uma mansão ao som da bachiana de Villa-Lobos evoca-se obviamente a utopia revolucionária pré-64 via Gláuber (Deus e o Diabo). Porém, a postura de Marcelo, ainda que consciente do fim do “otimismo” leviano, que parece na cena-chave da discussão com Ada se encontrar superado, comporta-se ao longo do resto do filme com expectativas e visões de mundo típicas do pré-64 - o exarcebado sentimento de culpa para com a pobreza (exemplificado de forma mais evidente na cena final) e com a situação para o qual se encaminha o país que atravessa o filme do início ao final, o que acaba sendo cansativo; assim como o otimismo leviano que o faz proclamar para o colega em mesa de bar que sua pretensão é a de mudar o mundo. Por outro lado, sua impaciência com Ada no momento em que esta lhe detalha o conflito e a angústia que vive no momento, para que tome coragem de romper com Mário e explicar toda a situação, parece espelhar também a impaciência de Sarraceni para com o drama burguês, da qual o triângulo amoroso que vivenciam é um de seus produtos típicos. Outra ambivalência, já que se no final o personagem de Marcelo se posiciona como definitivamente querendo se afastar deste universo, o filme foi construído quase que integralmente em cima dele - no que Sareceni parece também reconhecer sua dívida para o drama existencial no estilo de Antonioni, Bergman (a quem, por sinal, faz referência à Rumo à Alemanha) e, por tabela, Walter Hugo Khouri, do recente Noite Vazia (1964) - a rigorosa composição da imagem evoca Khouri, principalmente na seqüência que justapõe em montagem rápidas manchetes de diversos jornais ou ainda no close-up que recorta o olhar de Ada, adicionando logicamente uma dimensão política. Outro ponto importante que surge na discussão final entre Marcelo e Ada é a da complicada relação entre os sentimentos e as preocupações do indivíduo (para Marcelo uma característica burguesa que deve ser desprezada, como demonstra quando Ada lhe conta seus problemas íntimos) e a liberdade sonhada, que parece refletir de modo cristalino a inexistência na literatura marxista (na qual o personagem de Marcelo se apoia) de uma reflexão que aborde de forma coerente a questão. O trabalho de câmera, do mestre do Cinema Novo Dib Lutfi merece um destaque à parte. Seja na câmera nervosa que acompanha quase todos os movimentos de Marcelo, como a lhe acompanhar na  sua inquietação interior, seja na câmera elegante que segue em trajetória persecutória Ada até o banheiro onde irá trocar de roupa, que procura um ritmo adequado de se dirigir do quarto até o banheiro, para não flagrá-la despida - o mesmo ocorrendo no recurso de se situar por trás da estante no momento em que a mulher do amigo de Marcelo se oferece a este, abrindo sua camisa. A iluminação, freqüentemente estourada, é soberba e poética, chegando ao ponto de na cena em que Ada se contempla no espelho evocar o que Lutfi posteriormente faria na seqüência do “falso negativo” de Paulo Martins no quarto com Sílvia em Terra em Transe. O mesmo pode-se afirmar da perfeita  utilização dos atores na composição do quadro (a referida influência de Antonioni-Khoury e Bergman), muitas vezes apenas parcialmente dentro do campo. Também apresenta uma seqüência em que diversos cortes abruptos acompanham Ada no passeio solitário noturno em seu carro, comuns ao cinema de Godard e já precocemente decodificados para uma linguagem de maior apelo popular via filmes como Os Reis do Iê-Iê-Iê (1964) de Richard Lester. Entre o que pode ser considerado como profundamente datado se encontra a tosca caricaturização do  personagem do marido de Ada, como o insensível empresário que só sabe trabalhar, e que na única visita em a esposa faz a seu trabalho para lhe contar sobre como sua situação se encontra insuportável, abandona-a rapidamente para tratar de negócios da empresa. O flashback descritivo do momento feliz e romântico de Ada e Marcelo no casarão em ruínas evocam o passeio semelhante empreendido por Alain Delon e Claudia Cardinale em O Leopardo (1963) de Visconti.Imago/Mapa Filmes. 90 minutos


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