Mídia e estado de exceção


A aprovação da proposta de emenda constitucional que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, exige uma profunda reflexão sobre o papel dos meios de comunicação na cobertura jornalística sobre jovens acusados de autoria de atos infracionais. Como jornais e revistas percebem a situação de crianças e adolescentes em conflito com a lei diariamente em suas narrativas? Qual o tipo de agendamento produzido pela mídia e sua relação com o fortalecimento de medidas autoritárias e soluções de força por parte do poder público? Será que a imprensa tradicional está conseguindo provocar uma reflexão crítica sobre o tema ou apenas contribui para banalizá-lo?
Uma leitura mais atenta do que é produzido diariamente aponta que, apesar do destaque conferido à pauta sobre a situação da infância e da juventude no Brasil, boa parte dos órgãos de imprensa não vem conseguindo analisar com profundidade o fenômeno. Nesse sentido, a cobertura ganha destaque apenas quantitativamente.
Orientados por uma lógica punitiva como solução para o problema de jovens acusados de diferentes tipos de delitos, certos grupos de comunicação operam na perspectiva da produção do medo em reportagens e editoriais, legitimando assim alternativas conservadoras, desde a necessidade de uma polícia mais numerosa e “choques de ordem” até a existência de leis mais rigorosas. É importante ressaltar que o medo é uma categoria essencial como medida de controle e contenção social por parte do poder público para tratar uma parcela da população identificada como “outro indesejado” em espaços populares representados como lócus privilegiado da criminalidade.
Uma importante leitura a esse respeito é o texto “Risco e sofrimento evitável: a imagem da polícia no noticiário de crime”, de Paulo Vaz, Carolina Sá-Carvalho e Mariana Pombo. Nele, os autores mostram o modo como a mídia constrói a ideia do sofrimento evitável, ou seja, afastar da sociedade aqueles que virtualmente podem cometer crimes no futuro. Tal lógica impõe sacrifícios no presente, fortalecendo a indústria da segurança privada em condomínios, shoppings e carros blindados. Na outra ponta do tecido social, jovens negros, pobres, moradores de periferias e favelas, são o alvo preferencial do nosso sistema penal seletivo e excludente. As consequências da montagem desse aparato punitivo são os números do quadro carcerário brasileiro, que como sabemos não está voltado para o trabalho de ressocialização dos que ali estão. O Brasil concentra a quarta maior população de presidiários no mundo, com mais de 500 mil confinados. As estatísticas tendem a crescer com a proposta da redução da maioridade penal, cuja lógica segue o mesmo princípio de contenção de riscos ou de sofrimentos a serem evitados por parte de quem está para além dos muros.
Proteção e dignidade
Há outras questões que devem ser objeto de reflexão neste tipo de cobertura midiática. Parte dos veículos de grande audiência na TV mantém uma relação de conivência com os aparelhos repressivos. Autointitulados de jornalísticos, os programas policialescos, por exemplo, expõem jovens suspeitos publicamente em rede local ou nacional apelando para uma linguagem sensacionalista, criminalizante, com apresentadores aos gritos no estúdio pregando o ódio e a violência. Não apenas isso. Ainda hoje, encontramos a autoridade policial como fonte única em matérias de jornal. Os chamados “autos de resistência” em favelas e periferias das grandes cidades dificilmente são objeto de uma abordagem crítica por parte dos meios de comunicação. Para concluir, embora a lista seja mais extensa, podemos citar a falta de problematização quanto ao emprego da confissão como método de interrogatório, abrindo espaço para a prática de tortura. Como afirmou certa vez o criminalista Nilo Batista, “confissão e tortura são companheiras milenares”.
Enquanto reforça determinados aspectos, a mídia omite outros, como a pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (2012), demonstrando que cerca de 80% dos delitos cometidos por jovens envolvem principalmente roubo, furto e tráfico, não estando relacionados, portanto, com homicídios. Ao contrário, gerações inteiras têm sido perdidas, vítimas da violência, nas áreas mais pobres das grandes cidades.
Essa realidade tende a se agravar com a aprovação da proposta de redução da maioridade penal. A sua primeira aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça, confirma a lógica de um estado que, para promover a vida, não em sua totalidade, adota mecanismos de uma violência depuradora de eliminação do outro, agora com a imputabilidade da sua população mais jovem. Materializa-se, portanto, um sistema que tende a se transformar continuamente em máquina letal. Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, o exercício sistemático de mecanismos de exceção torna o conceito de democracia precário justamente porque transforma o que era temporário e excepcional em regra pelo Estado.
A violência que se impôs, mais uma vez, no Complexo do Alemão, nos últimos dias, incluindo a morte de uma criança de 10 anos, é mais um exemplo da vigência de um estado de exceção permanente no Rio de Janeiro e em outros espaços populares no país. É por isso que não há um sentido de repressão nas favelas que pode ser localizado num momento histórico específico ou como anomalia de um passado ditatorial, mas uma violência contínua.
Diante do recrudescimento das medidas de exceção tornando-se regra no Brasil, não há como não recorrer a Agamben neste momento, retomando a discussão sobre a maioridade penal:
“Na medida em que o estado de exceção é, de fato, ‘desejado’, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente”.
Acrescentaria que o poder soberano hoje no Brasil não reside na figura singular de um mandatário. Será mais apropriado falar num tipo de soberania parlamentar cujos representantes decidem a necessidade para praticar a exceção, buscando incluí-la num ordenamento jurídico e fazendo coincidir a justiça com a política. O debate em torno da redução da maioridade penal nos obriga a discutir, como sugere o pensador italiano, o que significa agir politicamente neste momento.
Quanto ao jornalismo, concluo voltando àquela pergunta inicial do texto sobre o sentido da cobertura sobre atos infracionais que levam a medidas de privação de liberdade de adolescentes. Podemos partir da premissa que produzir tal conteúdo noticioso significa muito pouco se proprietários dos veículos de comunicação e jornalistas não assumirem o compromisso ético de reavaliar seus modos de atuação, tratando a questão da infância e da juventude não em programas sensacionalistas de TVs ou como “caso de segurança pública” em editorias policiais de jornais, mas na perspectiva do direito à proteção e dignidade da criança e do adolescente previsto em nossa Constituição Federal.
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Marcio de Souza Castilho é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)

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