O Dicionário Biográfico de Cinema#182: Carl Theodor Dreyer




Carl Theodor Dreyer (1889-1968), Copenhague, Dinamarca

1919: Praesidenten [O Presidente]; Blade af Satans Bog [Páginas do Livro de Satã]. 1920: Prastankan [A Quarta Aliança da Sra. Margarida]. 1922: Die Gezeichneten. 1924: Mikael. 1925: Du Skal Aere Din Hustru [A Queda do Tirano]; Glomsdalsbruden [The Bride of Glomdal]. 1928: La Passion de Jeanne d'Arc [O Martírio de Joana D'Arc]. 1932: Vampyr [Vampiro]. 1943: Vredens Dag [Dias de Ira]. 1945: Tva Maniskor. 1954: Ordet [A Palavra]. 1964: Gertrud

É facil, por conta de ser dinamarquês, formação luterana e a atenção visível às provações espirituais em seus filmes, considerar Dreyer como um austero analista escandinavo da culpa psicológica e da absorção metafísica. Mas sua dinamarquesidade  é de relevância limitada; Dreyer realizou alguns de seus melhores filmes na Noruega, França e Alemanha. Nem é razoável aceitar a interpretação tradicional dele como um artista religioso visionário e transcendental.

A obra de Dreyer sempre se ampara na beleza da imagem que, por sua vez, é um registro da convicção luminosa e independência dos seres humanos. Seus filmes são devotados principalmente às emoções humanas e se aparentam serem relativamente deprimentes, então pode haver uma razão apropriada para chama-lo de dinamarquês. Mas a simplicidade e pureza de estilo não vão contra a intensidade. A grandeza de Dreyer é o modo que faz um retrato tranquilo de sentimentos esmagadores. Sua arte, e sua inteligência tornam a paixão ordenada, sem nunca traí-la. Paixão é a palavra - tão frequentemente incluída no filme de Joana D'Arc sem considerações apropriadas. Dreyer filma a paixão humana e é somente como função secundária que a paixão leva em conta o significado espiritual universal. A santidade das emoções é sua fé e a habilidade cinematográfica de realizar uma narrativa estética e ordenada seu objetivo. Todas suas obras são paixões - no sentido de serem como celebrações musicais de sentimentos, e no sentido de que são devotadas a respostas específicas humanas a situações definidas pelas histórias. Dizer que Dreyer se preocupa somente com a vida das emoções é resgatá-lo deste recesso nórdico onde, infelizmente, ainda permanece e pô-lo aonde pertence - na companhia de Mizoguchi, Vigo, Ophüls, Renoir, Rossellini, Bergman, e Godard

O último citado remete a tentativa mais comovente de situar Dreyer nas correntes principais do cinema. Quando, em Viver à Vida, Anna Karina vai ao cinema e se comove às lágrimas pela visão de Falconetti em O Martírio de Joana D'Arc, Godard estava se curvando em respeito a Dreyer, referindo-se a Karina ser dinamarquesa (sua mãe trabalhou para Dreyer) e comparando Karina com Falconetti - ambas mulheres bonitas tornadas graves pela contemplação delas próprias atuando. Foi também asseverar a continuidade cinemática vital através da potência do primeiro plano que evoca a vida interior e assim perceber que pode haver uma santidade emocional na mente de uma prostituta parisiense. E é uma nota de rodapé amarga a isto que, após tão eloquente tributo francês, quando Gertrud estreou em Paris foi saudado com uma incompreensão tão brutal, que teve de ser retirado de cartaz em poucos dias. No entanto, Gertrud é a última obra-prima de um dos maiores dentre os diretores. 

Com trinta anos quando dirigiu pela primeira vez, Dreyer havia sido jornalista antes de se juntar a Nordisk para escrever cartelas para seus filmes e, então, trabalhar nos roteiros. Enquanto jornalista, havia resenhado peças e filmes, e também servido como repórter judicial. O estresse inicial na acuidade dos registros, o recurso ao confronto legal e a disciplina de destilar narrativa em cartelas persuasivas são todas influências que podem ser detectadas em suas obras. Seus primeiros filmes foram confessadamente realizados sobre a influência de Sjöström e Griffith, particularmente Intolerance [Intolerância]. O Presidente é um desinibido melodrama sobre crianças ilegítimas, enquanto Páginas do Livro de Satã é uma imitação de Intolerância, até o ponto de ser em quatro episódios. 

A Quarta Aliança da Sra. Margarida, filmado no campo norueguês, é sua primeira obra-prima. Sua história apresenta o sentimento crescente de Dreyer pela surpresa emocional: o jovem clérigo chega a uma nova morada, mas tem que se casar com a viúva idosa do falecido titular. Há uma garota que ele ama, que chega a casa como sua irmã. O jovem casal planeja assassinar a viúva, somente para vir à tona que ela não é uma ogra, mas uma mulher sensata e gentil, que compreende os sentimentos dos dois e os observa calorosamente. Pela época que ela morre, a concepção de amor dos jovens havia sido enriquecida por seu exemplo e por sua descrição de sua própria felicidade quando jovem. Outro melodrama foi elevado, sem mácula, na celebração da felicidade e inteligência espiritual. E é digno de nota que a mulher que interpreta a viúva era ela própria bastante velha, e tenha morrido pouco após as filmagens. Trata-se de um exemplo extremo, talvez, mas típico, da importância de Dreyer se situar na "semelhança emocional" entre ator e personagem. 

Seus três filmes seguintes foram realizados na Alemanha, e é evidente que Dreyer respondeu ao gosto expressionista por revelar emoções através dos cenários e da iluminação. Em Mikael, por exemplo, ele teve Karl Freund e Rudolph Maté como câmeras. Outro filme maior, Mikael é um item importante na coleção de obras que teve um artista como figura central. O elenco é extraordinário: o diretor Benjamin Christensen como o artista, Walter Slezak como o jovem e Norah Gregor (a Christine de Renoir em La Règle du Jeu/A Regra do Jogo) como a garota. E é um filme trágico, mas resignado, demonstrando uma vitalidade em escapar do artista, quando a história de amor cresce. O senso de precisão de Dreyer foi grandemente desenvolvido e a concentração emocional é acentuada pela confusão fin-de-siècle dos cenários. De volta à Dinamarca, A Queda do Tirano demonstrou o quão longe Dreyer abandonava uma narrativa repleta de eventos pela ação emocional. Com um cuidado especial pela verosimilitude da casa na qual o homem e sua esposa vivem, Dreyer realizou um filme sobre as intenções emocionais de um casamento fracassado. Uma vez mais, a reconciliação é conseguida - como em A Quarta Aliança da Sra. Margarida - e A Queda do Tirano, feito em 1925, hoje aparenta ser uma soberba peça de realismo emocional. Antecipa Gertrud em sua análise da mulher que se sente oprimida pelo marido, e ainda conclui com um despertar emocional sem melodrama.

Foi então à França para seu filme mais conhecido, O Martírio de Joana D'Arc, rigorosamente baseado nos registros do tribunal, triunfantemente demonstrando que o primeiro plano era não somente um meio, mas também um fim. Pode ser que Griffith tenha sido o primeiro a empregar regularmente o primeiro plano para ênfase ilustrativa, mas quem argumentaria que O Martírio não é construído sobre sua variação e profundidade? O método de Dreyer é ilustrado por sua própria explicação de como persuadiu Falconetti, através dos primeiros planos, a "dar" a carga emocional que ainda é comovente:

Com Falconetti acontecia frequentemente que, após ter trabalhado toda uma tarde, não éramos bem sucedidos em conseguir exatamente o requerido. Dizíamos para nós mesmos então: amanhã começaremos novamente. E o dia seguinte, nós tínhamos a tomada ruim do dia anterior projetada, examinavámos, buscavámos e sempre terminavámos por encontrar, nessa tomada ruim, alguns pequenos fragmentos, algum pouco de luz, que renderia a expressão exata, a tonalidade que buscavámos. E é dali que partíriamos novamente, pegando o melhor e abandonando o restante. É de lá que partimos, para recomeçar...e ter sucesso.

Maté fotografou O Martírio e o filme seguinte de Dreyer, Vampiro, realizado na França, com capitais privados. E é um conto de Sheridan le Fanu, interpretado em sua maior parte por amadores, e um dos maiores filmes de horror. Sua qualidade não é sobrenatural, mas inevitável. Toda a conversa de conteúdo emocional ou psicológico no gênero horror se inicia com Nosferatu e Vampiro. Filmado em cenários reais, ele é invadido por uma luz enevoada, alcançado pelo reflexo de uma luz de uma gaze de volta à lente. Sem sequer descartar os elementos góticos do vampirismo, observa em seu tema um encontro emocional universal. Portanto os acontecimentos de horror se tornam expressões amplificadas de uma vida interior. A intensidade se reflete em todos os outros filmes de Dreyer, mostrando serem em sua inteireza criações de luz, sombras e posicões de câmera.

Houve um intervalo de onze anos entre Vampiro e Dias de Ira, não plenamente explicado. Ao retornar aos longas, em 1943, na mesma época passa a realizar documentários: sobre arte e arquitetura e, com especial impacto, sobre a segurança das estradas. Dias de Ira e A Palavra ambos possuem temas religiosos condicionados pela aspereza puritana da Escandinávia. Dias de Ira é sobre o julgamento de uma bruxa, no qual a bruxa morre amaldiçoando o pastor. A esposa do pastor ama um jovem, e a descoberta de que assassinou o pastor a faz considerá-la como bruxa. A paixão aqui é maligna e destrutiva e é difícil não observar o filme como sendo influenciado pela guerra. Ao mesmo tempo concentra-se na solidão humana, que Dreyer no passado havia usualmente utilizado para redimir. A Palavra é um alegoria, de uma peça de Kaj Munk, filmado na vila que Munk havia sido pastor. O filme reafirma a visão de Dreyer do amor humano e religioso como sendo inseparáveis. 

Outros dez anos se passaram antes de Gertrud, a história de uma mulher de 41 anos, infeliz com seu marido, que ama um homem mais jovem, mas que é amada insuficientemente em retorno, decidindo ir morar sozinha em Paris. A conclusão da insistente independência é tomada dentro de um enquadramento de calma beleza. E ainda abaixo da ordem do filme há, mais forte que nunca, um exultante senso de paixão. Quando foi realizado, a reserva e lentidão de Gertrud estavam tão fora de moda, que sua emoção não foi percebida. Porém, esperou pela descoberta do mundo como o melhor filme de Dreyer e a defesa de seu método:

O que me interessa - e isso vem antes da técnica - é reproduzir os sentimentos dos personagens em meus filmes (...) O que é importante (...) é não somente capturar as palavras que dizem, mas também os pensamentos por trás das palavras. O que busco em meus filmes, o que desejo obter, é um mergulho nos pensamentos mais profundos dos meus atores por meios das mais sutis expressões. Para isto existem as expressões (...) que residem nas profundidades de sua alma. O que me interessa, acima de tudo, não é a técnica do cinema. Gertrud é um filme feito com o meu coração. 

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 769-75.

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