Filme do Dia: Nastya (1994), Georgiy Daneliya

 


Nastya (Rússia, 1994). Direção Georgiy Daneliya. Rot. Adaptado Aleksandr Adabashyan, Georgiy Daneliya & Aleksandr Volodin, a partir do livro de Volodin. Fotografia Pavel Lebeshev. Música Andrei Petrov. Montagem Yelena Taraskina. Dir. de arte Levan Lazishvili. Figurinos Larisa Lebedeva. Com Polina Kutepova, Irina Markova, Valeriy Nikolaev, Aleksandr Abdulov, Galina Petrova, Nina Ter-Osipyan, Natalya Shchukina, Olga Nedovodina-Finney, Aleksandr Potapov.

Nastya (Kutepova) vive com sua mãe enferma, que a pressiona constantemente para que arranje um namorado. Para aplacar os reclames da mãe, ela encontra um conhecido, mas é refugada por ele, assim como por uma amiga fashion. No dia que vai ao encontro mal sucedido, no entanto, Nastya conhece um jovem embriagado, Sasha (Nikolaev), e ele a leva para conhecer sua mãe. Ela vai deixar Sasha no ponto que pegará seu transporte público e no retorno encontra uma senhora de bicicleta (Ter-Osipyan), aparente feiticeira, que afirma que lhe garantirá dois desejos. acordando no dia seguinte como uma verdadeira beldade-modelo (Markova). Nastya passa a ser objeto de cobiça por vários homens, dentre eles um político influente local. Desiludida com o mundo glamuroso, mas falso, em que começa a ser inserida,  abandona o set da filmagem no metrô de um grande evento promocional e deseja retornar a ser quem sempre fora, acordando novamente com sua cara e visual de antes. Quando Sasha vai a lojinha que Nastya volta a trabalhar, ela tenta se desvencilhar dele, afirmando que não se encontra, mas ele a encontra e se sentindo rejeitado, vai embora, sendo seguido por ela. Porém ele decide novamente voltar a fazer a mesma graça do dia em que se conheceram e fica numa situação difícil.

Há comentários não muito discretos sobre as mudanças recentes no país, e o fim da União Soviética, como é o caso dos tanques militares nas ruas – e que servem para movimentar, como guinchos, bondes quebrados! – mas o que se sobressai é, mais que tudo, sua estrutura fabular, que talvez também possa ser lida como alegoria, em que a mesma personagem é vivida por duas atrizes de perfil bem distinto (tal como Esse Obscuro Objeto do Desejo, de Buñuel), numa espécie de atualização de conto de fadas. É uma comédia que segue a tradição, ainda que de forma mais suavizada, das comédias excêntricas soviéticas, a tirarem sarro de sua própria sociedade. Não por acaso dirigida por um dos realizadores de uma das mais conhecidas, Kin-Dza-Dza  (1986), filme que nos vem à mente antes mesmo que saibamos se tratar do mesmo realizador. Este sarro é demonstrado em diversos momentos. Como é o caso da opulência dos servidores públicos do Estado  em oposição à modéstia que boa parte da população enfrenta, inclusa Nastya e sua mãe. Aqui observada  como caricatura nos infindáveis corredores de um prédio adornado com inúmeros lustres ao teto. Já a humilde morada das duas mulheres, ainda assim se encontra praticamente a poucos passos do passeio da outra margem do rio que separa a área mais turística de Moscou, cujos prédios icônicos são imediatamente entrevistos. E o jogo de influências descarado para quem é amigo do rei (leia-se subadministrador público municipal). E a má qualidade dos serviços públicos, caso do ônibus hiper-lotado observado ao início, mas também do buraco na rua que provoca dois acidentes, modesto em termos de quantidade e qualidade em relação aos seus equivalentes tupiniquins. Há também os militares da banda em trajes típicos ensaiando. E não podia faltar o culto à personalidade estilo realismo socialista, presente na estátua de Engels, onde Nastya marca seu encontro malsucedido ao início, mas também no depósito de pequenos bustos à venda em que esta trabalha – comentários de longe mais criativos,  e hilários, neste quesito, foram feitos décadas antes em uma nação satélite da soviética, em A Morte de um Burocrata, filme provavelmente conhecido de Daneliya.  E o que há de mais fashion para a nada atraente Nastya, ainda não transformada, é um grupo de jovens de perfil que mimetiza as estrelas pop ocidentais do momento, ou ao menos da década anterior, embora com uma extravagância mais comportada. E não deixam de sobrar farpas para a abertura ao capitalismo tampouco, com todo seu grotesco kitsch nonsense a substituir a marcialmente bolorenta arte oficial, sem abdicar de simulacros como é o caso da banda marcial em meio ao extravagante evento publicitário. É o espetáculo ganhando ascendência sobre a vida real – os passageiros do metrô, inclusive o tipicamente comum Sasha, ao qual não falta sequer uma espinha proeminente na bochecha, não podem descer na estação, e observam estupefatos uma valsa coletiva em meio a um grande aparato de produção. Para uma comédia infelizmente falta hilaridade, e as tiradas ou soam anacrônicas como as que Nastya vivencia antes da transformação ou sem efeito como a comparação da Nastya transformada em Madonna ou o bigode do busto de Stálin quebrado com a queda. A única exceção é um desengonçado Sasha se ajoelhando diante de Nastya, incomodando uma passageira e lhe provocando um riso que soa mais espontâneo que todo o restante do filme, embora as atuações nem de longe sejam más. E desnecessário afirmar qual será o fim simbólico esperado de Nastya em termos narrativos. Desde que a comédia é comédia, gênero essencialmente conservador, luxo e cosmopolitismo são observados de esguelha, senão com desprezo. Então já se espera o retorno de Nastya ao seu banalíssimo cotidiano, porém autêntico, onde é respeitada “pelo que é” e não “pelo que aparenta ser”. Que tal se dê numa rejeição da carruagem pela abóbora é mais uma das ironias com a dimensão fabular, em sua mescla com um humor mais profanamente cinematográfico. E seu final traz uma boa surpresa em sua indefinição. Com relação ao segundo desejo, cabe se indagar se ao ter sido  utilizado para retornar a ser abóbora não provocará a morte de seu amado, da periclitante situação em que se meteu.  E, claro que se os desajeitados passos de dança do casal principal nos fazem lembrar da evocação pós-modernista brasileira ao musical, feita com mais dubiedade, ironia e glamour em Anjos da Noite, os desejos de fama e (sobretudo) beleza aqui são representados menos toscamente que os presentes em A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal. |Mosfilm/Ritm/Roskomkino. 89 minutos.

 

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