O Dicionário Biográfico de Cinema#176: Fred Astaire
Fred Astaire (Frederick Austerlitz) (1899-1987), n. Omaha, Nebraska
Há algo bastante sugestivo da tradição americana na forma como uma batalha napoleônica se transformou em um nome sem raízes ou etimologia. No entanto, o quão evocativo este nome é: gere as partes juntas e o resultado é tão ritmíco quanto Frenesi; separe-as e se pode ter Fred, a Estrela ou Fred em uma escada, subindo a escada (*) - portanto, Astaire, l'esprit d'escalier.
E é próprio responder deste modo por conta de tanto Astaire ser uma questão de uma carruagem elegante, e não penso que seja acidental seu nome evocar alguma agilidade serena especial. Isto nos leva a questionar: é Astaire um ator de cinema? e o que faz uma grande interpretação no cinema? Há uma boa razão de nos indagarmos disso, caso sejamos visitados por criaturas de um universo distante, ignorantes de cinema, seria o melhor apresentá-lo a alguns passos de Astaire como a evidência assentada do potencial do meio? Melhor que a de nobres atores como Olivier, Jannings, Brando, Barrymore, et al.? Astaire é a mais refinada expressão humana do musical que, por sua vez, é a manifestação extrema do cinema puro: a apresentação realista de seres humanos em situações mágicas, oníricas e imaginárias. Isto pode ser pensado para implicar que a dança de Astaire depende da ilusão. Não muito. Ele foi sempre o mais tecnicamente exigente e ambicioso dos dançarinos das telas, o mais ansioso em se apresentar em cenários ininterruptos. Nos anos 1920, teria sido possível vê-lo dançando virtuosas apresentações rotineiras nos palcos. A continuidade espacial e temporal do teatro teria deixado claro o quão difícil era a façanha. O cinema limpa o senso de dificuldade e o substitui pela facilidade que permite cada transformação desejada pelo crônico sonhador. Astaire não é tão grande dançarino quanto um grande dançarino filmado. Nureyev no cinema é menos que de corpo presente, porque era mais estimulado por uma plateia verdadeira e saltos reais. Astaire, como todos os sonhadores, é um perfeccionista que amava trabalhar no sigilo fervoroso de um estúdio para uma imagem impecável de sua própria graça. Prestou-se ao distanciamento do cinema por ser uma personalidade demasiado fria e indistinta que celebrava o espírito da elegância, enquanto canalizado pela elaborada e rápida fotografia em movimento.
Esta compreensão foi ressaltada pela última aparição em papéis "de destaque". Após Silk Stockings [Meias de Seda], em 1957, direcionou-se prioritariamente a espetáculos de TV e a interpretar. O primeiro fruto azedo disto foi On the Beach [A Hora Final] (59, Stanley Kramer). Se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre a grosseria de Kramer, foi a prova final. Ao elencar Astaire como um piloto de corridas, um homem essencialmente escondido na lataria de seu carro. O holocausto nuclear poderia ter sido tão fluente dramatizado pelo jogador de golfe Astaire? Então ao menos podemos desfrutar de sua ronda delicada pelas verdejantes locações.
No entanto, uma vez que Astaire foi convidado a um melodrama sério, foi uma tensão assisti-lo. Na encenação, ele é francamente esquivo: como um filósofo numa sessão de bingo, há um sentido embaraçoso e esgotamento de um homem sendo capturado em seu ponto cego, mas corajosamente tentando ser educado. Além do que, o drama borrou sua aparência. Em A Hora Final algumas vezes ele está desgrenhado, o que é uma heresia contra o asseio perpétuo de sua obra característica. Isto se aplica igualmente a Finian's Rainbow [O Caminho do Arco-Íris] (68, Francis Ford Coppola), um respeitoso e nostálgico tributo a sua grandeza, assim como para os outros filmes totalmente medíocres dos anos 60: The Pleasure of His Company [Papai Playboy] (61, George Seaton); The Notorious Landlady [Aconteceu num Apartamento] (62, Richard Quine); The Midas Run [O Jogo das Barras de Ouro] (Alf Kjellin, 69); e The Towering Inferno [Inferno na Torre] (74, John Guillermin).
Nos musicais, igualmente, Astaire é um homem sem caráter; algumas vezes, nada distante de um homem sem humanidade. Mas, nos musicais, isto não é tanto uma deficiência quanto uma ênfase audaciosa no estilo. Astaire é preeminentemente o santo da sofisticação dos anos 30, uma borboleta em movimento até morrer, cuja encantadora voz suave orna a sentimentalidade de suas canções. (Ele é um grande cantor - não é de admirar que todos os compositores o queriam - que trata a canção com reverência). É um homem citadino, vazio de personalidade, opiniões e cordial, mas um homem que se porta incomparavelmente. É algo como um dândi do século XVIII em sua preferência por não levar nada à sério, a não ser a articulação de seus movimentos soberbos. Compare-o com Nick Charles, o detetive particular Hammet, como interpretado por William Powell. Ambos são homens mais polidos que substanciosos, mas o Charles de Powell possui uma suspeita de sua própria frivolidade e é cínico ao escondê-lo. Astaire é completamente tranquilo, daí a figura de playboy inane que corporifica, homens que só existem para andar suavemente por salões, para preservar rigorosos vincos nas calças e o tom alto e despreocupado de voz. Astaire é o supremo ideal desta gangue de misantropos americanos dos anos 30: Herman Mankiewicz, Robert Benchley, Dorothy Parker, Cole Porter, Ben Hecht. Observando a vida na melhor das hipóteses como absurdo, e na pior como horrorosa, optaram pela graça brilhante em pequenas coisas e alguma excelência vívida e "inútil", como a dança de Astaire. Em outro lugar, sugeri que ele poderia ser o Jekyll para o Hyde de Cagney. Astaire foi também muito próximo de Jay Gatsby, um homem insignificante, inclinado a facilitar ocasiões públicas.
Fui chocado por isto quando levei a alguns estudantes um trecho de Meias de Seda (57, Rouben Mamoulian). O trecho que nos aproximamenos foi a sequencia na qual Astaire e Cyd Charisse dançam em torno de vários cenários de cinema vazios. E é uma das grandes sequencias de dança no cinema: um compêndio de movimentos de câmera, tela larga, ritmos em contraponto e o contraste intrigante do dominador Astaire e da frígida Charisse. Mas antes que a dança se inicie há um prelúdio. Charisse chega de carro aos portões do estúdio, e Astaire murmurando "Olá, olá...", manca para encontrá-la. Este movimento nos afasta da dança, porque é primoroso, original e Astaire. A emoção do momento - dos amantes reunidos - dificilmente parece atingi-lo. Mas peça-o para se mover de A a B e ele se empolga.
Isto toca em um princípio vital: que é frequentemente preferível ter um ator de cinema que se move bem que um que "compreenda" o seu papel. Um diretor deveria ser capaz de explicar um papel, mas poucos homens ou mulheres podem se mover bem diante da câmera. Em The Big Sleep [À Beira do Abismo], há numerosos planos de Bogart simplesmente andando através de cômodos, eles nos atraem para o alerta resiliente de sua persona cinematográfica tão certamente quanto os ácidos diálogos. A vagante liberdade de Bogart captura nossas expectativas. Com Astaire o efeito é de longe mais concentrado, pois é seu único ativo.
Sua carreira é a história de uma busca por parceiras que poderiam suportar sua gloriosa limitação. Inicialmente, dançou no palco com sua irmã, Adele: foram sensação em Londres e Nova York. Porém quando ela se casou (ingressando na aristocracia britânica) em 1932, ele refugiou-se nos filmes. Selznick se convenceu do charme de Astaire "a despeito de suas enormes orelhas e ruim traçado de queixo". Sua estreia, aos 34, foi em Dancing Lady [Amor de Dançarina] (33, Robert Z. Leonard), na MGM, com Joan Crawford. Mas foi contratado pela RKO e se tornou parceiro de Ginger Rogers por nove filmes, que são a expressão menos unida do movimento auto-suficiente. Acima de tudo, Ginger juntou-se a ele nestas danças aceleradas, mas íntimas e com conversas, saltos duros e brilhantes falando de felicidade: Flying Down to Rio [Voando para o Rio] (33, Thornton Freeland); The Gay Divorcee [A Alegre Divorciada] (34, Mark Sandrich); Roberta (35, William A. Seiter); Top Hat [O Picolino] (35, Sandrich); Follow the Fleet [Nas Águas da Esquadra] (36, Sandrich); Swing Time [Ritmo Louco] (36, George Stevens); Shall We Dance? [Dança Comigo?] (37, Sandrich); Carefree [Dance Comigo] (38, Sandrich); e The Story of Vernon and Irene Castle [A História de Vernon e Irene Castle] (39, H.C. Potter). Em 1937 contracenou com Joan Fontaine em A Damsel in Distress [Cativa e Cativante] (37, Stevens), com resultados menos satisfatórios. E é verdade que em alguns filmes posteriores ele parecia demasiado refinado para a companhia que está mantendo. Mas está esplêndido, com outra virtuose, Eleanor Powell em Broadway Melody of 1940 [Melodia da Broadway de 1940] (40, Norman Taurog) e com Paulette Goddard em Second Chorus [Amor da Minha Vida] (40, Potter). Trabalhou bem com o altivo glamour de Rita Hayworth em You'll Never Get Rich [Ao Compasso do Amor] (41, Sidney Lanfield) e You Were Never Lovelier [Bonita como Nunca] (42, Seiter), mas teve que resolver para Bing Crosby, enquanto estimulador, em Holiday Inn [Duas Semanas de Prazer] (42, Sandrich), e voltou para a RKO para The Sky's the Limit [Alta Malandragem] (42, Edward H. Griffith), no qual possui um maravilhoso momento solo tarde da noite.
A completa extravagância visual de Vincente Minnelli coube bem a Astaire e destacou-se com outra dançarina também sem coração, Lucille Bremer, em Ziegfield Follies (46) e Yolanda and the Thief [Yolanda e o Ladrão] (45). A alta teatralidade deste último lhe coube como uma luva. A ideia de um anjo mascarando-se enquanto homem é, por si mesma, uma incursão na personalidade de Astaire. Após Blue Skies [Romance Inacabado] (46, Stuart Heisler), com Crosby novamente, substitui um Gene Kelly contundido em Easter Parade [Desfile de Páscoa] (48, Charles Walters), e parecia um mentor bastante frio para Judy Garland. Ele e Ginger Rogers se reuniram sem rodeios em The Barkleys of Broadway [Ciúme, Sinal de Amor] (49, Walters), e os quatro seguintes não foram nada notáveis: evidentemente escolhendo Red Skelton como parceiro de composições em Three Little Words [Três Palavrinhas] (50, Richard Thorpe); com Betty Hutton em Let's Dance [Nasci Para Bailar] (50, Norman Z.McLeod); brilhante, mas pretensioso em Royal Wedding [Núpcias Reais] (51, Stanley Donen) e The Belle of New York [Ver, Gostar e Amar] (52, Walters).
The Band Wagon [A Roda da Fortuna] (53), é um dos filmes fragmentados de Minelli, mas ele introduziu Fred Astaire a Cyd Charisse e lhes deu a engenhosidade do pastiche rotineiro de Spillane. Daddy Long Legs [Papai Pernilongo] (55, Jean Negulesco), com Leslie Caron, é aborrecido, mas Astaire finalizou com dois de seus melhores filmes: Funny Face [Cinderela em Paris] (57, Donen) e Meias de Seda. O primeiro é seu romance mais bem sucedido, pois parece que ficou intrigado com o desafio de "musicalizar" a supostamente séria Audrey Hepburn. Ele coreografou Cinderela em Paris, mas a autoria final foi dada a Donen, ainda que somente por fazer a rotina ser tão encantadoramente lírica. Mamoulian está claramente em cada enquadramento de Meias de Seda, mas é também a reivindicação de duas personalidades um tanto rígidas, obcecadas por dança e sua rota para o êxtase rodopiante.
Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 112-17.
(*) N. do T: Jogo de palavras de Thomson com o nome Astaire e "astride the stair"
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