O Dicionário Biográfico de Cinema#174: Satyajit Ray



 Satyajit Ray (1921-92), n. Calcutá, Índia

1955: Pather Panchali [A Canção da Estrada]. 1957: Aparajito [O Invencível]. 1958: Paras Pathar (*) [The Philosopher's Stone]; Jalsaghar [A Sala de Música]. 1959: Apu Sansar [O Mundo de Apu]. 1960: Devi [A Deusa]. 1961: Rabindranath Tagore (d); Teen Kanya [Três Mulheres]. 1962: Kanchenjungha; Abhijan [A Expedição]. 1963: Mahanagar [A Grande Cidade]. 1964: Charulata [A Esposa Solitária]. 1965 (**): Aranyer Din Ratri [Dias e Noites na Floresta]. 1971: Kapurush-O-Mahapurush [The Coward and the Holy Man]***. 1966: Nayak [O Herói]. 1967: Chiriakane [The Managerie]. 1968: Goupi Gyne, Bagha Byne [The Adventures of Goopy and Bagha]. 1970: Pratidwandi [Siddharta and the City]. 1972: Seemabadha [Company Limited]. 1973: Ashani Sanket [Trovão Distante]. 1975: Jana Aranya [The Middleman]. 1977: Shatranj Ke Khilari [Os Jogadores do Fracasso]. 1978: Joi Baba Felunath [O Deus Elefante]. 1980: Hirok Rajar Deshe [The Kingdom of Diamonds] (****). 1981: Pikoo (*****) (c); Sadgati [Deliverance] (TV). 1984: Ghare-Baire [A Casa e o Mundo]. 1989: Ganashatru [O Inimigo do Povo]. 1990: Shakha Proshaka [Os Galhos da Árvore]. 1991: Agantuk [O Estrangeiro]

Satyajit Ray tendia a produzir  estudos soberbamente bem acabados e humanos dos fracassos humanos ou incompreensões nos quais não há conflito imediato entre a graça miniaturizada dos traços e as rachaduras da vida das pessoas que eles descrevem. Digo "não há conflito imediato", mas recordo que François Truffaut saiu de A Canção da Estrada, cansado de cuidado tão preciso. Este incidente me impressiona, pois tanto Truffaut quanto Ray são compreendidos como discípulos de Renoir, e diretores com ternura incomum com seus próprios personagens. E Ray tem tido muitos admiradores, sobretudo no Ocidente, aonde é celebrado como figura central do cinema humanista, um artista tchecoviano de grande refinamento, e um diretor digno de A Passage to India [Passagem para a Índia], de E.M. Forster. Talvez a referência a Forster entregue o jogo, pois depende de uma visão essencialmente paternalista britânica da Índia e na confrontação trágica de Forster da tolerância inglesa e do misticismo indiano. De fato, Passagem para a Índia é um livro sobre paixão, mistério insondável e histeria, abaixo da delicadeza de Bloomsbury. Suspeito que sua impetuosidade teria sido tão elusiva para Ray quanto o foi para David Lean

Mas Ray foi um aristocrata indiano, um admirador da literatura e da música europeias, e um realizador deliberadamente destinado às salas de cinema de arte ocidentais pelo governo indiano. Nasceu em uma distinta família bengalesa, filho de um escritor, pintor e fotógrafo. Após estudar economia na Universidade de Calcutá, passou dois anos estudando pintura com Rabindranath Tagore. Este foi o período que se encontrou criativamente: as influências de Tagore e das belas artes tradicionais permaneceram. Portanto, a vivacidade de sua concepção literária é tão indisputável quanto um implacável, elegante senso de composição. A câmera é muito facilmente a ferramenta do pictorialismo e Ray tinha uma perseverança inata em abordar esta calma persistente. Trabalhou em publicidade como  desenhista e fez algumas ilustrações para a edição do romance de A Canção da Estrada. A publicidade o levou a Londres, onde foi atropelado por Ladrões de Bicicletas. Isto justificou seu interesse no realismo, em histórias cotidianas, e em atores não profissionais. Em seu retorno à Índia, foi futramente encorajado ao encontrar Renoir  e buscar locações para The River [O Rio Sagrado]. Mas Ray não trabalhou neste filme e, embora o admirasse, pensou não ser tipicamente indiano.

Mas o que é um filme indiano? Foi a noção ocidentalizada de Ray do artista indiano digno? Como ele se relaciona ao vasto, escaldante e ingênuo cinema para as massas indianas? Quão distante parecia Ray trabalhar dentro de um dos países mais agônicos e contraditórios do mundo? Não é razoável condenar Ray pela pequeneza dos temas, quando Tchecov escreveu peças de casas de campo nos anos anteriores à Revolução. Mas Tchecov parecia sentir as brisas externas, enquanto o universo de Ray era demasiado fechado em si próprio. Um bengalês, confessou a impraticabalidade de sua busca de neorrealismo na moderna Calcutá. Portanto, embora exista uma genuína e bastante comovente angústia em sua obra, não há um grande senso do turbilhão indiano.

Com toda a aclamação que saudou a Trilogia de Apu, seu melhor trabalho inicial me parece focado em mulheres - A Deusa, A Esposa Solitária, Três Mulheres, A Grande Cidade. O fator pessoal, invariavelmente, vai além de qualquer reprovação. Ele imagina pessoas ricamente críveis, examina-as com verdadeira caridade, e encoraja seus atores a revelações não afetadas. Sua própria música e pintura acrescenta o sentimento que um gosto simples é eliminar o sabor. A questão permanece, se ele realmente avançou numa obra de trinta anos ou foi a maravilhosa e sedutora habilidade de ternura de, digamos, Dias e Noites na Floresta, simplesmente um refinamento de seus primeiros filmes?

Talvez Ray tenha sido vítima de suas origens; certamente este é frequentemente o dilema de suas personagens. Por exemplo, A Sala de Música - um filme sobre a inabilidade de um aristocrata de perder sua herança - relacionando o estranhamento do homem da realidade para a obsessão com a arte de um modo mais intrigante que a Trilogia de Apu. Várias vezes - A Deusa,The Philosopher's Stone e The Adventures of Goopy and Begha - Ray recorreu à mitologia indiana. E é possível que este tenha sido o verdadeiro material para que se possa ter o senso visual rasgado entre o refinamento ocidental e a profusão da arte indiana.

Ray uma vez falou da ênfase indiana no detalhe, a pérola do orvalho que contém o mundo, e uma das referências místicas por esta meticulosidade pode ser vista nos primeiros planos extremos da vida celular que parecem descrever passagens dos Upanishads (******).

Mas pode a míriade de histórias indianas ainda ser referidas a tais modelos? O aspecto mais encorajador da carreira posterior de Ray foi sua problemática tentativa de descobrir um tema moderno indiano. Company Limited foi sobre gente ambiciosa e bem sucedida em Calcutá; sua observação humana foi mais severa que Ray costumava ser, e há um senso de frescor do cenário político. O Trovão Distante foi ainda além. Ambientado em 1942, apesentava os efeitos da fome em Bangladesh. Pela primeira vez, Ray efetuou uma conexão entre a condição individual e a nacional. 

The Middleman foi uma exploração adicional da desordem, corrupção e tradições esquecidas, com um jovem tentando traçar seu caminho como um prestativo assistente aos negócios na floresta. Mas Os Jogadores do Fracasso foi um passo atrás - rumo à beleza mais segura e acadêmica do passado. Proveniente de um conto de Munshi Premchand, foi o primeiro filme de Ray com diálogos em hindi e inglês; também foi em cores, e estrelado por Saeed Jaffrey e Richard Attenborough. Possui duas histórias que se refletem uma na outra de uma maneira um pouco demasiado óbvia para a sensação bastante acolhedora de ironia.

Nos anos 80 foi impedido pela saúde fragilizada e pela exposição da variedade do cinema indiano. No entanto, sua estatura estava estabelecida e há um vídeo seu, no leito de morte, ganhador de um Oscar especial em 1991 pela "rara maestria da arte do cinema e por seu profundo olhar humanitário." A retórica havia sido merecida, mas Ray parecia mais claramente que nunca a projeção de "nossa" Índia, não exatamente a Índia da Índia.

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 2168-71. 

(*) N. do E: Parash Pathar no IMDB. 

(**) N. do E: consta como sendo de 1970 no IMDB

(***) N. do E: Não há registros nem do título original nem de sua versão em inglês no IMDB. 

(****) N. do E: Heerak Rajar Deshe no IMDB.

(*****) N. do E: Pikoor Diary no IMDB. 

(******) N. do E: textos com instruções religiosas

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