Filme do Dia: Mistérios de Lisboa (2010), Raoul Ruiz
Mistérios
de Lisboa (Portugal/França, 2010). Direção: Raoul Ruiz. Rot. Adaptado: Carlos
Saboga, a partir do romance de Camilo Castelo Branco. Fotografia: André
Szankowski. Música: Jorge Arriagada. Montagem: Carlos Madaleno & Valeria
Sarmiento. Dir. de arte: Isabel Branco. Cenografia: Paula Szabo. Com: Adriano
Luz, Maria João Bastos, Ricardo Pereira, Clotilde Hesme, José Afonso Pimentel,
João Arrais, Albano Jerônimo, João Batista, Léa Seydoux, Melvil Poupaud, José
Manuel Mendes, Rui Morrison, Filipe Vargas.
Pedro da Silva, quando criança (Arrais),
ressente-se de não possuir sobrenome como seus colegas, que o destratam por
considerá-lo bastardo. Certo dia um incidente mais grave, no qual reagiu,
acabou por lhe provocar uma agressão que o deixou enfermo. Padre Dinis (Luz),
tido por alguns como seu verdadeiro pai, conta-lhe aos poucos alguns dos
segredos relacionados a seus pais. Sua mãe, Ângela (Bastos) é uma marquesa que
se enamorou de um jovem, Dom Pedro (João Batista), que apesar de virtuoso não
possui o dinheiro suficiente que seu pai quer para um pretendente a mão da
filha. Ela fica grávida do amado, mas seu pai possui planos para que ela se una
ao Conde de Santa Bárbara (Jerónimo), que lhe deixa trancada na torre desde o
nascimento da criança, que escapou por pouco de ser morta. Elisa de Montfort
(Hesme) se apaixona perdidamente por Alberto de Magalhães (Pereira), um
tropeiro errante que era conhecido como Come-Facas (Pereira), e o segue mesmo depois de
casado. Frei Baltazar da Encarnação (Mendes), conta ao padre Dinis sobre sua
juventude dissoluta, sendo que aos 23 anos já reclama da ausência de um amor
mais substancial em sua vida. No mesmo momento surge a mulher do Marques de
Monteselos (Morrison), por quem se apaixona e acabará fugindo para a Itália,
ela morrendo no parto que deu a luz a criança, que Frei Baltazar deixará com
seu melhor amigo, Paulo (Vargas), ingressando em um convento.
O
que mais chama a atenção nesse que é o último filme concluído por Ruiz, além do
caráter de enxugamento com relação a versão em episódios para a TV, que acaba
por provocar uma relativa segmentação e saltos dentre alguns dos episódios apresentados,
é sem dúvida – e mais importante – a prevalência do valor da narrativa sobre
qualquer dimensão de verossimilhança ou realismo. Assim, paira não apenas a
ambigüidade sobre muito dos elementos narrados, o que em última instância
poderia ser questionada até mesmo se não se trataria toda a narrativa de um
sonho de seu protagonista, como também se alude a duplicidade dos papéis
sociais que fazem com que um padre tenha sido no passado um mero cigano errante
e um dos homens mais ricos e influentes da corte não mais que um contrabandista
e ladrão de cavalos. Sobre a hipótese da fantasia em mescla com a realidade
também se apresenta o próprio teatro em miniatura ganho por João enquanto se
encontra enfermo e que logo ganhará vida através de sua imaginação, assim que
os eventos passam a ser narrados de forma mais romanesca, também servindo como
pontuação para a narrativa. À produção esmerada, característica habitual de
Branco, também produtor de Manoel de Oliveira e muitos outros realizadores
autorais, agrega-se uma fina ironia com os valores sociais talvez ausente tanto
de sua fonte original como de boa parte de suas adaptações para o cinema
(incluindo a versão do cinema clássico português para Amor de Perdição), que parece liquefazer rapidamente muitos dos
tropos associados a narrativa melodramática. Por sua vez, o próprio estilo de
Ruiz, e sua forte carga onírica e ao mesmo tempo distanciada na apresentação
dos fatos, acaba por provocar um interessante choque com essa matriz
melodramática, como se um tributo e paródia a mesma fosse efetivados ao mesmo
tempo. Destaque para o olhar de terceiros que observam a cena se desenrolando,
notadamente no momento em que a Marquesa de Montecelos comete sua traição com o
futuro Frei Baltazar e é observada de dois pontos de vista distintos. Clap
Filmes/Alfama Films/RTP/Artefrance/Câmara Municipal de Lisboa/Cofinova
Developpement. 272 minutos
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