Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#110: Nueve Reinas

 


NUEVE REINAS. (Argentina, 2000). O primeiro grande sucesso popular do então chamado nuevo cine argentino, que emergiu no final dos anos 90, Nueve Reinas (Nove Rainhas) foi realizado com um orçamento de 1,5 milhão de dólares, apoiado por uma concessão de diretor de longa ficional pela primeira vez e roteirista solo que Fábian Bielinski recebeu da companhia cinematográfica Patagonik, após vencer sua competição de roteiros. O filme foi visto por mais de um milhão e 235 mil espectadores e rendeu mais de 1.2 milhão tanto na Espanha (em 2001) quanto nos Estados Unidos (em 2002). Foi também um grande sucesso de crítica, recebendo 7 prêmios Condor da Associação dos Críticos de Cinema Argentinos, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Ator (Ricardo Darín), e prêmios para Bielinsky e/ou Darín em festivais de cinema em 2001 em Biarritz, Lima, Lleida (Espanha),  Oslo (Noruega) e no Festival de Cine de Bogotá (Colômbia) e em 2002 em Cognac (França), Fantasporto (Portugal), Portland (EUA), Saint-Jordi (Espanha).

Nove Rainhas é um excelente exemplo de filme de gênero - drama criminal misturado com comédia apresentando artistas vigaristas e um assalto - que podem ser interpretados como sendo ressoantes profunda e criticamente dos anos do presidente Carlos Menen, durante os quais o capital estrangeiro/global saqueou a economia argentina. Bilinsky nasceu em Buenos Aires (em 1959) e começou a realizar filmes no ensino médio. Estudou cinema no Centro de Experimentación y Realización Cinematográfica (CERC) e graduou-se com um curta, La Espera, em 1983. Após trabalhar como primeiro assistente de direção, a começar por Eversmile, New Jersey (O Sorriso de uma Vida (Argentina/Reino Unido), em 1989. Co-roteirizou um longa, La Sonámbula, em 1999.

O filme se inicia em uma loja de conveniências, onde Juan (Gastón Pauls) trabalha em um golpe mesquinho de troca de bilhetes para recuperar mais dinheiro do que ele pagou por uma pequena compra. Outro vigarista, Marcos (Darín), posando de policial à paisana, intervém quando Juan tenta novamente na caixa do próximo turno, salvando efetivamente o homem mais jovem de uma verdadeira prisão. Na rua, após Marcos revelar sua verdadeira identidade, Juan lhe pede que seja seu mentor no crime. O título do filme se refere a uma folha única de nove selos da República de Weimar alemã com a cabeça de uma rainha, que possuem falhas únicas, e portanto valem uma fortuna. Um dos modos nos quais o filme pode ser compreendido é como uma obra deliberadamente carregada de "fraudes": não havia uma rainha na República de Weimar, e da distâcia que a câmera sempre se mantém dos selos, a face em perfil curiosamente se assemelha com a da Rainha Vitória, que aparece em muitos selos valorosos britânicos, incluindo a primeira postagem de um selo no mundo, o Penny Black (1840), cujas cópias originais podem valer 8 mil dólares cada. Muitos selos do sistema postal de Weimar continham uma imagem ancestral imaginada da Alemanha, gravada ao final do século XIX, a partir da pose da atriz Anna Führing, mas estes selos  certamente não seriam chamados de "rainhas".

Um falsificador veterano, Sandler (Oscar Nuñez), um sócio de Marcos, reivindica ter feito uma versão falsa, e imediatamente antes que Juan e Marcos estejam prontos para efetivar a venda, a valise contendo a folha é misteriosamente arrebatada pelo passageiro de uma motocicleta e jogada no rio. Sabemos que Marcos enganou sua própria família, incluindo sua irmã e seu irmão bem mais jovem, em uma herança de 200 mil dólares. Também Juan descobre que a folha original de selos pertence a uma viúva de Buenos Aires, e que ela poderia ser persuadida a vendê-los por 250 mil dólares. Juam sabe que Vidal Gandolfo (Ignasi Abadal), um rico filatelista espanhol que está em processo de deportação, estava o tempo todo disposto a pagar 450 mil pelos selos, mas parte do acordo é que Marcos irá persuadir sua irmã, Valeria (Leticia Brédice), a passar sua última noite na Argentina com Gandolfo. Ela concorda, se Marcos admitir, ao seu irmão mais jovem Federico (Tomás Fonzi) que o enganou na herança. Valeria entrega a Marcos um cheque certificado de Gandolfo, mas quando este alcança o banco descobre que está impedido. O filme finda com a revelação de que o namorado de Valéria ao longo de todo o tempo havia sido Juan (verdadeiro nome Sebastián), e que trabalhavam com Sandler e um griupo de atores interpretando Gandolfo, a irmã de Sandler, os motociclistas, e outros participantes, e que haviam enganado Marcos, pagando a Valeria e Federico os 200 mil que ele os devia. Bielinski  presumivelmente pretende que o público do filme eventualmente tome o lado da irmã e do irmão mais jovem enganando Marcos, por vê-lo como representante do sistema que havia enganado cidadãos argentinos decentes no colapso econômico do final dos anos 90, e a cena dos clientes do banco tendo rejeitado os seus pedidos de recuperarem os seus valores foi notavelmente profética do que aconteceria logo após Nove Rainhas ser realizado. O próprio diretor foi ainda mais longe, sugerindo que seu filme refletua o "quão próximo" o cinema é "de uma fraude, de fazer com que alguém acredite em coisas que não existem." (Andermann, 2012, p. 151).

Uma versão hollywoodiana foi feita de Nove Rainhas, Criminal (171, 2004), e Bielinsky foi creditado como origem do material. Para seu segundo longa, El Aura (Aura, 2005), Bielinski retornou ao universo do crime mas aqui, a encenação de um assalto aparentemente perfeito dá terrivelmente errado, e um violento derramamento de sangue ocorre, talvez respondendo aos críticos de Nove Rainhas que reclamaram que o filme havia irrealisticamente evitado os aspectos sujos da criminalidade. Aura foi claramente intencionado ser mais próximo de um "cinema de arte" em suas intenções sérias e no emprego de tela ampla, imagens cinemascópicas a descreverem a remota paisagem circundando a personagem central de um taxidermista, que planejava o crime. Tragicamente, Bielinsky morreu em decorrência de um ataque cardíaco, quando divulgava o filme no Brasil, mas recebeu uma série de prêmios póstumos, no Festival Internacional del Nuevo Cine Latino (Havana, 2005) e no Festival Internacional de Cine de Cartagena, 2006), e o filme ganhou seis condores de prata em 2006, incluindo Melhor Filme Argentino, Diretor, Roteiro e Ator (Darín).

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 423-25. 

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