Filme do Dia: A Costa dos Murmúrios (2004), Margarida Cardoso

 


A Costa dos Murmúrios (Portugal, 2004). Direção: Margarida Cardoso. Rot. Adaptado: Cedric Basso & Margarida Cardoso, a partir do romance de Lídia Jorge. Fotogorafia: Lisa Hagstrand. Música: Bernardo Sassetti. Montagem: Pedro Filipe Marques. Dir. de arte: Augusto Mayer & Ana Vaz. Figurinos: Silvia Meireles. Com: Beatriz Batarda, Filipe Duarte, Monica Calle, Adriano Luz, Luís Sarmento, João Ricardo, Dinarte Branco, Sandra Faleiro, Bia Gomes.

Eva (Batarda) se casa com Luis (Duarte), em plenos estertores da guerra colonial portuguesa em Moçambique. Ela não gosta de morar lá, mas aos poucos reage a ausência do marido, partido para o combate, em postura distinta da esposa, Helena (Calle) do superior dele, Jaime (Luz), que se resigna em ficar trancada em casa, após um episódio de infidelidade que foi sacrificado seu amante diante de si. Eva se envolve com o repórter-poeta Álvaro (Sarmento). Porém, os soldados retornam e os boatos chegam aos ouvidos de Luis.

Talvez se perca a essência fugidia do romance? Existe o amor pelas cores, tão acentuadas já nas primeiras páginas de Lídia Jorge. E existe também bastante de Margarida Cardoso. Sobretudo quando já se viu o bem posterior Yvone Kane. Há a presença igualmente de Batarda, atriz que parece se adequar como uma luva a máscara de impenetrabilidade que exala como boa parte dos seres humanos. E como Eva é sensível aos ritos  um tanto selvagens de seu homem e do homem que o domina, seu superior, abertamente cínico e desagradável. Porém não deseja a morte desse, ainda que esse morra ao final, sorte reversa da amiga Helena. E esse também lhe esconde traços de personalidade, que descobre através do material secreto que seu superior guarda e a esposa lhe exibe. Numa das fotos Luis está com uma cabeça de negro espetada na ponta da lança no alto de uma cabana. Ela o trai e ele lhe esconde os sentimentos, embora sofra. E há a melancolia, latente ou explícita, de Kane, vivida por europeus brancos em meio a miséria e morte de negros, mas também de brancos, dos próximos do círculo de Eva, até chegar a ela própria. Esse envolvimento crescente com o país é também um envolvimento inevitável com a morte. E se o mundo dos negros e dos brancos parece socialmente bem distinto, existem conjunções (inclusive carnais, como a de uma amante de Álvaro com quem tem filhos) e trespassamentos, esses apenas quando algo foge do script. Se não é tão requintado estilisticamente quanto seu filme posterior, tampouco se aventura em incorporar na trama um vínculo com esse passado, que não funciona de todo, motivo de travas emocionais entre mãe e filha naquele. Pois já é esse próprio passado. E, como naquele, Cardoso consegue construir uma atmosfera, aqui de forma mais parcimoniosa, como também mais discreto é o uso da elipse. Mas os não ditos estão todos lá. Por vezes assomam. Mas também se deparam com as barreiras para quem esses foram dirigidos. E revelação pelo diálogo, somente o de Helena, quando narra a morte do amante pelo marido. Situação que Álvaro parece predestinado a sofrer. E as imagens em super-8, que se poderiam imaginar produzidas pela própria família de Cardoso, que viveu em Moçambique até a independência, não o são, como os créditos finais pontuam. Aqui há mais de romanesco, não por acaso decorrente de um romance, como mortes envolvendo personagens importantes ao longo da trama, que talvez destoem um pouco do clima seco e anti-sentimental que Cardoso impõe a seus filmes – como se deixasse aos elementos estilísticos e a música essa responsabilidade. As intérpretes femininas parecem se sair melhor que seus contrapartes masculinos. Isso é possível que se dê porque prá esses é reservado pouco espaço para evolução. Filmes do Tejo/Les Films de l’Aprés-Midi/ZDF-Arte. 115 minutos.

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