Filme do Dia: A Ladra (1950), Otto Preminger

 


A Ladra (Whirlpool, EUA, 1950). Direção: Otto Preminger. Rot. Adaptado: Ben Hecht & Andrew Solt, a partir do romance de Guy Endore. Fotografia: Arthur C. Miller. Música: David Raksin. Montagem: Louis R. Loeffler. Dir. de arte: Leland Fuller & Lyle R. Wheeler. Cenografia: Thomas Little & Walter M. Scott. Figurinos: Charles Le Maire. Com: Gene Tierney, Richard Conte, José Ferrer, Charles Bickford, Barbara O’Neil, Eduard Franz, Constance Collier, Fortunio Bonanova.

Ann Sutton (Tierney) é flagrada roubando um broche em uma loja de departamentos e somente se livra do constrangimento com a intervenção de David Korvo (Ferrer), que conhece o prestígio social de seu marido, o psicanalista Bill Sutton (Conte). Ann passa então a orbitar na influência de Korvo, sendo ocasionalmente hipnotizada por ele. É nessa situação que é flagrada ao lado do cadáver de Theresa Randolph (O’Neil), uma paciente de seu marido. O tenente Colton (Bickford) inicialmente é simpático àtentativa de Bill Sutton de livrar sua mulher da acusação de homicídio, mas os indícios trazidos por esse parecem demasiado fantasiosos para serem levados a sério.

Preminger, com a mesma atriz icônica de sua filmografia, Tierney, retorna a tópicos similares aos que havia trabalhado em sua provável obra-prima de alguns anos antes, Laura. Se não chega ao extremo de deixar uma possibilidade de leitura dupla ao final como fizera anteriormente, talvez o que resista de mais interessante nessa produção, e que se saberá de antemão sabotado pelas convenções típicas do cinema da época, é uma duplicidade ambígua não apenas de personagens, como a vivida por Tierney, como do seu próprio perfil de relacionamento – que ela, quando “hipnotizada”, afirma ser de uma mentira atroz, ao ponto de lhe provocar a insônia que a torna refém de Korvo (numa mais discreta alusão ao universo da hipocrisia burguesa, enfrentado de forma mais radical e direta em um filme como A Sombra de uma Dúvida, de Hitchcock). Se o personagem de Korvo parece reminiscente mais tímido do padrão mais clássico de criminoso a funcionar, associado com toda uma teia criminosa de laivos sobrenaturais como os presentes sobretudo na filmografia muda de um Lang (M, os filmes da série Mabuse), e um antecessor do pastiche algo anêmico de um Woody Allen sobre filmes como esse (notadamente Magia ao Luar), Preminger não deixa passar sequer ironias contra o próprio então recém-iniciado processo federal contra o controle monopolísticos da indústria em todas suas etapas pelos grandes estúdios, que será um dos principais motivos para o fim do sistema de estúdios da era clássica.  No trecho em questão Korvo ironicamente se refere ao monopólio pretendido dos maridos sobre suas esposas (“Pessoalmente não tenho nada contra as mulheres que traem os seus maridos. Inclusive o nosso governo está contra o monopólio”). A psicanálise, como muito habitual então, servirá como mote que justifica os “erros” de sua protagonista, sinalizando para o eficiente jogo de espelhamentos que o filme elabora – Ann repete um comportamento que é condicionada por sua relação com seu pai, com uma figura semelhante a ele que é seu atual marido; os atores Ferrer e Conte, através até mesmo de sua similaridade física, podem reforçar similitudes que vão no sentido oposto da sã separação maniqueísta que aparentemente é apenas reforçada pelo filme. É pouco, certamente, quando comparado, a elaboração polar dos dois protagonistas masculinos e com eles, da visão da protagonista em Laura, mas vai bem além do que era produzido rotineiramente em Hollywood na época. Algo que não passaria despercebido de Godard, que apresenta um cartaz do filme em seu Acossado. E não faltam reciclagens do anterior, inclusive em suas “licenças narrativas” de roteiro que possibilitam que alguém muito próximo da principal investigada, portanto com interesses diretos ou indiretos sobre a investigação, acompanhe o policial em sua investigação. Twentieth Century Fox Film Corp. 98 minutos.

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