Filme do Dia: Wara Wara (1930), José María Velasco Maidana

 


Wara Wara (Bolívia, 1930). Direção: José María Velasco Maidana. Rot. Adaptado: José María Velasco Maidana & Antonio Diaz Villamil, baseado na obra teatral La Voz de la Quena, de Antonio Diaz Villamil. Fotografia: Mario Camacho, José Jimenez & José María Maidana. Cenografia: Arturo Borda. Figurinos: Martha de Velasco & Alicia de Diaz Villamil. Com: Juanita Tallansier G., Martha de Velasco, Arturo Borda, Emmo Reyes, José Maria Melasco Maidana, Guillermo Viscarra Fabre, Damaso E. Delgado, Raul Montalvo, Juan Capriles, Humberto Viscarra M.

Em meio a uma animada comemoração inca, Arawicu possui pressentimentos funestos. Ele afirma para o grupo que os deuses choram a rivalidade de seus descendentes, Huáscar e Atahuallpa, e que a ira divina propiciará que inimigos, provenientes do mar, abatam-se e provoquem a tragédia de seu povo. Curaca Calicuma se desgosta diante da visão pessimista de Arawicu e o envia à prisão. Wara Wara, filha de Calicuma, leva comida a um faminto Arawicu na prisão. Esse profetiza que a maldição não se abaterá sobre Wara Wara. E afirma que a salvação do povo dependerá dela. Calicuma passa a ter certeza que a tragédia se abaterá sobre seu povo, após indagar dos céus. Chega a notícia que Atahuallpa se tornou prisioneiro dos homens de Pizarro. Os brancos exigem ouro para sua liberdade e se coleta o que há de ouro disponível. Antes que seja possível qualquer tipo de negociação ou troca, Atahuallpa é enforcado. Sem saber do ocorrido, os incas sacrificam uma llama para sua saúde. O sacerdote Huillac busca nas vísceras do animal, algum sinal de bom augúrio. Um mensageiro chega de Cuzco, portando a má notícia. As hostes invasoras se aproximam. O combate entre espanhóis e incas se inicia. Mesmo se saindo bem, o exército inca sente a morte de Calicuma, que recebe um balaço de espanhóis em posição privilegiada. Nitaya, a esposa de Calicuma, também é morta. Huillac e Wara Wara fogem para o esconderijo em que está depositado o ouro. Anos se passam, e os poucos sobreviventes, dentre eles Huillac e Wara Wara, tramam a restauração de seu império. Essa vai fazer suas prédicas e no caminho se depara com o grupo de espanhóis que tenta violenta-la. Graças ao capitão Tristán o feito não se sucede, mas esse é ferido no pescoço e recolhido pelos incas. Wara Wara clama a Huillac para aquele que se bateu por ela não seja sacrificado. Com a gradual recuperação de Tristán, esse passa a viver um idílio amoroso com Wara Wara. O guerreiro Apu Mayta testemunha um encontro fortuito e logo trará a nova para a tribo. A discórdia se estabelece. Wara Wara percebe que não poderá trair seu povo e seus pais mortos pelos invasores. Após sua despedida, o capitão é encontrado por Gordillo. Tristán confessa a Gordillo o idílio com Wara Wara e o sofrimento após seu final. Esse promete ajuda-lo. Gordillo a rapta e leva-a a seu chefe, mas Wara Wara não concede em permanecer com eles. Atormentada, finda por retornar ao convívio de Tristán e Gordillo. Porém são capturados pelos incas e condenados a serem abandonados à própria sorte em pleno despenhadeiro deserto. Arawicu, em resposta ao ato de Wara Wara quando se encontrava preso, tenta intervir na sorte funesta do casal. Ele busca o auxílio de Gordillo, que chama os espanhóis, que os resgatam da fria e profunda gruta em que haviam sido depositados.

Nada escapou, a exceção dessa película, dos poucos longas produzidos pelo cinema boliviano silencioso. E mesmo essa, foi dada como perdida por décadas até que material da mesma tenha sido entregues  por herdeiros do seu realizador, em 1989, passando por um longo processo de restauração até que se chegasse a essa versão, que não conta com os entretítulos originais (com exceção do único sobrevivente) e que presumidamente é a mesma que foi apresentada na Cinemateca Boliviana, na inauguração oficial da instituição. Não se sabe que tipo de pesquisa sobre os figurinos foi efetuada, mas algumas mulheres que surgem na tribo inca mais parecem portar indumentárias de algum épico dos tempos do surgimento do cristianismo. O tema indianista, herança de uma literatura de fundação, e presente em um cinema de feições semelhantes, já havia tido seu auge no Brasil, na década anterior (produção infelizmente completamente desaparecida) e vivia seus dias de glória na Bolívia, onde também fora tema de uma película anterior de Maidana (La Profecía del Lago), censurado à época. Há um senso de criação de uma dignidade que vai ser buscado menos na postura ou gestos exagerados de seu elenco, caso fosse tributário de boa parte dos épicos hollywoodianos (cuja influência, felizmente, parece mais próxima de ser sentida nos figurinos) que na elaboração da própria imagem, como é o caso da beleza com que se trabalha a iluminação (ricamente modulada em luzes e escuridão, com predomínio da última) e os planos mais aproximados da cena em que Arawicu alerta seu povo para a maldição. A composição da cenografia surge distante do espalhafato kitsch dos épicos produzidos no norte. Um encantador acerto, ainda que venha a ser derivado da falta de recursos e de uma possível utilização de adereços arqueológicos ou cópias desses.   Embora a representação dos indígenas seja observada nos limites da idealização indigenista, observa-se tudo do ponto de vista desses, e Pizarro como um invasor, ainda que evidentemente com um distanciamento histórico que agora pode identificar Pizarro e seus homens com a metrópole e os incas como uma matriz diferenciada de nação, deixando de lado a exclusão real dessa do processo de comunidade nacional criado posteriormente. Como o filme constrói tudo da perspectiva dos incas, sente-se como poucas vezes no cinema, a barbárie praticada pelos invasores. Dentre tantas virtudes dessa memorável produção, louva-se a negação do estéril engessamento anacrônico das figuras históricas do passado. Arawicu avança faminto sobre a comida com a mesma postura nada cerimonial com que os recém-desembarcados avançam sobre a carne e se deleitam com o vinho, inclusive às escondidas dos companheiros. E também sua não menos virtuosa utilização da montagem, sendo que somente nos daremos conta do motivo de Gordillo encontrar um colega morto a partir do relato, e respectivo flashback, que apresenta o capitão pondo sua vida a risco para defender a integridade de Wara Wara – elo inescapável de todo romance de fundação.  Enquanto os homens indígenas possuem traços bem mais próximos do que representam, Nitaya e Wara Wara são vividas por atrizes brancas. Como o capitão e Wara Wara conseguem se comunicar com tal desenvoltura, talvez se explique como um auxílio prestimoso do cinema mudo. Ao final, a capitulação inexplicável de Arawicu, após a da própria Wara Wara, mais resistente que o habitual em situações do tipo, transforma o olhar de simpatia para com os incas que havia acompanhado o filme desde então, e o registro melodramático e amoroso individual passa a se sobrepor ao bem comum.  Impressionante a indiferença de Wara Wara para com os cadáveres dos seus, que se encontram ainda pelo chão, quando retorna ao lado do espanhol. O último plano, no estilo do que será popularizado muito depois por filmes como Love Story,  com o casal se dando as mãos contra o sol poente ao fundo, testemunha uma saída pouco feliz para a pergunta que não quer calar ao longo do filme: como se resolverá seu imbróglio amoroso, metáfora das diferenças que compõem a nação? O aniquilamento e a subserviência a que fica relegada a cultura inca proposta pelo final é uma triste constatação a contrapelo do desequilíbrio na aparente balança que o amor romântico pretende fragilmente acenar como resposta. Destaque para a única cartela sobrevivente original, que surge com apresentação bastante distinta das que foram criadas para esta versão, a partir da obra em que foi inspirado e das imagens resgatadas, umas poucas delas, próximo ao final, já em estado avançado de deterioração. E também para a forma inesperada em que o respiro cômico de Barbolín Gordillo se segue uma surpresa trágica, encontrando cadáveres de seu grupo, que também se regalavam, como ele, há pouco. Há uns poucos momentos francamente ridículos, como o que uma indígena torce abobalhado para o primeiro confronto entre incas e espanhóis, o que apenas demonstra Maidana ser um espectador dos filmes norte-americanos. E Wara com os lábios besuntados por um ostentoso batom, no momento que busca o rompimento cm seu amado.  Urania Films. 64 minutos.

 

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