Filme do Dia: Grey Gardens (1975), Ellen Hovd, Albert Maysles, David Maysles & Muffie Meyer
Grey Gardens (EUA, 1975). Direção: Ellen Hovde, Albert
Maysles, David Maysles & Muffie Meyer. Fotografia: Albert & David
Maysles. Montagem: Susan Froemke, Ellen Hovde & Muffie Meyer.
Se os documentários realizados pelos Irmãos Maysles
vinculados a concertos de rock ou personalidades da música (Monterey Pop, Don’t Look Back) assim como a um lado menos glamoroso da cultura
norte-americana (Caixeiro-Viajante)
se encontram mais fortemente próximos dos princípios do Cinema Direto, esse
documentário que, ainda mais que Caixeiro-Viajante,
apresenta um lado melancólico e oposto ao Sonho Americano – mãe e filha
pertencentes a família de Jacqueline Bouvier Kennedy que vivem em condições de
semi-miserabilidade em sua mansão em ruínas – também compartilha o caráter
observacional daqueles. Ao contrário deles, no entanto, constrói o perfil das
duas senhoras, ameaçadas de sofrerem intervenção das autoridades sanitárias,
tal o grau de desleixo em que se encontra a propriedade em que as duas, ao
contrário das produções mais fortemente vinculadas ao estilo Direto, não apenas
parecem sempre voltadas para as câmeras, como ainda fazem uso dessas como
objeto para veiculação de seus sonhos frustrados de estrelato, caso de Little
Edie, prima de Jacquie O (numa versão quase tão crespuscularmente sinistra e
insana quanto sua parente e antecessora ficcional Norma Desmond em Crepúsculo dos Deuses). E também não se furta em apresentar os próprios membros
da equipe de filmagem, seja refletidos no espelho, seja portando o equipamento
de som ou um dos irmãos Mayles auxiliando a mãe de Little Edie a se levantar.
Outrossim, e ao contrário daqueles, antecipa talvez uma vertente mais próxima
do documentário contemporâneo, assim como dos programas televisivos de estilo reality show ao flagrar, em diversos
momentos, “confissões” sussurradas de Little Edie para a câmera sobre os temas
mais diversos que a atormentam desde Jerry Torre, o auxiliar de serviços gerais
que a mãe simpatiza, e por quem Little Eddie possui sentimentos algo negativos
e que batiza de “Fauno de Mármore” até o quão insuportável para ela é vivenciar
o inverno em Grey Gardens. E, por via de tais estratégias, que incluem a
excessiva auto-exposição, o caráter acentuadamente performático da própria vida
cotidiana encenada e provavelmente ainda mais enfatizada, em toda sua
bizarrice, diante das telas, podendo ser traçado paralelos com documentários
que, por chaves diversas, também compartilham em maior ou menor grau de tal
postura como Edifício Master ou,
sobretudo, Na Captura dos Friedmans. Como boa parte dos documentários é
justamente esse vínculo com o universo ficcional, representado aqui mais que
tudo pelo excessivo histrionismo de Little Edie, passível de uma empatia
acolhedora pela cultura kitsch e/ou
gay que dá a tônica do filme. Ao longo desse fica mais que explícito uma
relação doentia entre mãe e filha, similar àquela observada entre as irmãs do
ficcional O Que Terá Acontecido a Baby Jane? e não muito difícil de ser inclusa entre vários outros filmes do
período que deslocavam um olhar algo mórbido-sensacionalista para figuras
similares (caso, por exemplo, dentre vários outros, de A Dama Enjaulada). À Little Edie, castrada por uma mãe extremamente
controladora, não resta outra saída que a do ressentimento, manifesto das mais
diversas formas ao longo das filmagens. Na única intervenção extra-familiar
observada, sem contar o ajudante Jerry e o jardineiro rapidamente entrevisto,
observa-se dois visitantes no aniversário de Edith Beale, sendo que a mulher
fica visivelmente constrangida diante das situações que presencia. No momento
talvez mais involuntariamente interessante do filme, descontadas as cenas de
Little Edie alimentando guaxinins no sótão ou desses subindo próximo à porta de
entrada da residência, essa afirma que a forma como se vê é diferente da que supõe ser vista. Embora ela se refira ao fato de se sentir criança quando se
encontra ao lado da mãe, sua vida adulta aparentemente tendo ficado
restrita a época de seu convívio na sociedade nova-iorquina, o que fica
mais pungentemente patente em tal cena é o mais que aparente descompasso entre
o que pensa de si e a representação trazida pelo filme, demonstrando a
diferença entre subjetividade interior e expressão exterior. O passado,
referido curiosamente mais pela filha que pela mãe, e quase inevitavelmente
associado ao fracasso de sua vida amorosa, presente em comentários como o que
todas as suas colegas de juventude se casaram e ela chegou a ser cortejada por
Paul Getty, um dos homens mais ricos do mundo, também emerge em fotografias dos
anos de glória de mãe e filha, agora reduzidos a uma mímica entre patética e
pungente, ou as duas coisas ao mesmo tempo, de seus anos de glória como
cantora, no caso da primeira, e de beldade e aspirante a atriz e dançarina no
caso da segunda. Posteriormente os Maysles, que atingiriam um sucesso como
poucos em sua filmografia, fariam uso do muito de material filmado para esse
documentário em The Beales of Grey
Gardens (2006). Portrait Films. 94
minutos.
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