Filme do Dia: O Porto (2011), Aki Kaurismäki
O Porto (Le Havre, Finlândia/França, 2011). Direção e Rot. Original: Aki Kaurismäki. Fotografia: Timo Salminen. Montagem: Timo Linnasalo. Dir. de arte: Wouter Zoon. Figurinos: Frédéric Cambier. Com: André Wilms, Kati Outinen, Jean-Pierre Darroussin, Blondin Miguel, Elina Salo, Evelyne Didi, Quoc Dung Nguyen, Laïka, Pierre Étaix, Jean-Pierre Léaud, Roberto Piazza.
Na Normandia, Michel
Marx (Wilms) é um sexagenário que tenta levar a vida sendo engraxate de
improviso, ao mesmo tempo que encontra completo apoio na esposa, Arletty
(Outinen), que sofre dores insuportáveis e pede que a leve ao hospital.
Enquanto isso, um grupo de refugiados africanos é descoberto no porto, sendo
que um garoto, Idrissa (Miguel), consegue fugir e passa a ser acompanhado
discretamente por Marx, que lhe oferece comida. Arletty descobre que se
encontra com uma grave enfermidade, mas pede ao médico (Étaix) que não diga a verdade a Marx. Ao chegar em
casa certo dia, Marx encontra Idrissa em sua casa. O caso se transformou em um
fato midiático-político de peso e o investigador, Monet (Darroussin), procura
contemporizar, fingindo não saber que Marx acolhe a criança. Um vizinho (Léaud)
seu, no entanto, segue os passos do garoto e chama a polícia. Marx reúne um
grupo de amigos e juntos organizam o retorno do cantor Little Bob (Piazza), em
show beneficente para arrecadar fundos com objetivo de pagar a arriscada
travessia de Idrissa para a Inglaterra, onde irá encontrar sua mãe. Quando o
garoto já se encontra embarcado, a polícia chega às imediações e se depara com
Monet no comando. Mais uma vez, e mesmo sob o risco de perder seu cargo, ele
afirma que o garoto não se encontra no local. Marx retorna ao hospital e encontra
o leito antes ocupado por Arletty vazio.
Enquanto a maior
parte das produções francófonas que tematizaram a imigração o fizeram sob a
chave do realismo, em grande parte reprodutor de imagens associadas ao que mais
comumente se ouve falar pela imprensa sobre a imigração (sendo um dos exemplos
mais célebres O Ódio, de Matthieu
Kassovitz) ou, no máximo, a apresentação do cotidiano de jovens pertencentes a
comunidades de uma segunda geração, já nascida na França (tais como A Esquiva), aqui se prefere uma
evidente fábula que aposta na recusa ao imediato verossímil. Tal recusa
pretende apostar na generosidade descompromissada daqueles que ainda pensam em
termos de coletividade, companheirismo em contraposição ao individualismo e
cego racionalismo para quem os imigrantes não passam de estatística. Porém
Kaurismäki não pensa essa utopia para um passado idealizado pré-capitalista
como Pasolini ou enquanto utopia futura delirante, ele pensa como possibilidade
presente, proveniente dos setores à margem da sociedade. Menos ingênua ou
condescendente do que possa parecer à primeira vista, seu estilo habitualmente
seco, com corte seco, pouco movimentação de câmera e luzes, interpretações e falas abertamente anti-realistas, o filme
afasta o sentimentalismo mais rasteiro que compromete propostas semelhantes,
como Bagdad Café. Aqui tampouco se
parte de uma situação abstrata ou marcadamente ficcional como naquele, mas de
uma realidade concreta, entrevista nas imagens de telejornal e na imprensa
impressa, como o próprio filme incorpora. A desconstrução desse sentimentalismo
se dá, inclusive, nos momentos potenciais de maior pathos, em que a trilha sonora se encarrega de tornar expresso a
paródia sutil do melodrama não reflexivo. Fundamental para o seu sucesso são as
interpretações inspiradas do trio central que, como muitos outros personagens,
fazem referência ao universo do pensamento social, das artes e mais
acentuadamente, do próprio cinema (Arletty é evocação de uma célebre atriz do
cinema clássico francês, Idrissa ao cineasta africano Idrissa Oudreago, assim
como Jacques Becker). Mesmo tais tributos soam menos afetados e tocados por uma
certa postura de subserviência que os de um cineasta como Wenders,
aproximando-se mais do padrão de Godard. Menos incensar subliminarmente uma postura
de exaltação dos valores humanitários universais da cultura europeia (algo
refletidos na postura de Homens e Deuses),
mas antes assumir seus limites enquanto evidente fabulação. A generosidade que expressa, consciente do risco
de se encontrar a um passo condescendência, tal como expressa, por vias
bastante outras, o contemporâneo brasileiro Febre do Rato, torna-se ainda mais digno por se afastar da habitual
desculpa do conformismo realista. Pandora Filmproduktion/Pyramide
Prod./Sputnik/YLE. 93 minutos.
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