Filme do Dia: Gen Pés Descalços (1983), Mori Masaki
Gen Pés Descalçõs (Hadashi no Gen, Japão, 1983). Direção: Mori Masaki. Rot. Original:
Keiji Nakasawa. Fotografia: Kinishi Ishikawa. Música: Kentaro Haneda. Montagem:
Harutoshi Ogata. Dir. de arte: Kazuo Oga.
Hiroxima, agosto de
1945. Gen Nakaoka, sofre com a família os infórtunios da fome, mas são poupados
dos bombardeios que assolam todas as grandes cidades japonesas. O cotidiano de
Gen é ir, juntamente com o irmão mais novo, Shinji, ajudar o pai,
Daikichi, a tentarem vender as pinturas que ele faz, para conseguirem comprar
algo para comer. Certo dia, cansados e famintos os irmãos disputam um pedaço de
batata doce, que é o que resta em casa e são repreendidos pela irmã mais velha,
Eiko, sobre a necessidade da mãe se alimentar, pois se encontra grávida. Os
irmãos, agora conscientes, conseguem encontrar um peixe, mas descobrem que faz
parte da propriedade de um velho e ignorante senhor. Esse bate em Gen, mas
quando fica sabendo da verdadeira história se sente compadecido e ajuda a
família. Num dia em que Gen vai para a escola ocorre a explosão da bomba
atômica e ele é testemunha de boa parte dos horrores sofridos como gente em
estado de decomposição, observar o pai e os irmãos serem engolfados pelo fogo
que grassa e a chuva ácida. Conseguindo escapar com a mãe, ele a auxilia no
nascimento de sua nova irmã, Tomoko. A situação de fome persiste e apesar de
todos os esforços dele e do que ele acredita ser o irmão mais novo reaparecido,
auxiliando no tratamento de um homem enfermo de uma
rica família, chegam tarde com a quantidade exorbitante de leite, pois Tomoko
falecera.
Num estilo visual não muito distinto do anime japonês e
buscando um tom semi-documental, na sua descrição gráfica dos ataques ou na
intrusão, nem sempre orgânica, de uma narração over que, a exceção de comentários como a proposta de trégua
imposta pelos americanos, recusada pelo governo japonês e que resultou no
bombardeamento posterior de Nagasaki, não vai muito além do lugar comum sabido,
o filme se aproxima bem mais do processo de identificação, associado sobretudo
com o universo fabular da ficção, com o núcleo familiar de Gen. De certo modo,
é sob sua perspectiva que se pretende apresentar o que é exposto, servindo a
narração onisciente justamente para uma inócua e didática emolduração do
contexto onde o drama familiar ocorre, como se a perspectiva do garoto somente
não fosse capaz de dar conta. O processo de identificação, de certa forma,
torna-se facilitado pelo fato do pai da família não compartilhar do orgulho
insano, aos olhos ocidentais, na vitória de seu país, algo que é compartilhado
por sua esposa e fica bastante delimitado no momento em que ela afirma para um
homem que chora por conta de ter acabado de saber que o Japão havia se rendido,
de que sente muita pena de que isso não tivesse ocorrido antes. Identificação
também auxiliada por nem Gen, nem sua mãe, nem seu pretenso irmão (não se chega
a uma afirmação definitiva, embora pareça evidente se tratar do mesmo garoto
que aparentemente havia sucumbido nas chamas) terem sofrido o processo de
literal desumanização do que se compreende habitualmente como ser humano,
apresentado por vítimas que se contaminaram mais gravemente pela radiação.
Essas são observadas no seu aspecto grotesco que, justamente por fazer uso da
animação, paradoxalmente apresenta minúcias de detalhes realistas que se
tornaram praticamente proibitivas de serem flagradas por câmera fotográficas ou
cinematográficas, seja por questões éticas ou pelo fato de terem ocorrido
imediatamente após os bombardeios, como a comum expulsão dos globos oculares de
suas órbitas. A exceção é o próprio Gen, que perde o cabelo, o que não chega
exatamente a ser algo catastrófico no contexto em questão, ainda que no momento
ele acredite que terá o mesmo destino do soldado que tentou salvar e acabou
morto, que apresentara sintomas semelhantes. E, como um pouco de alento diante
das situações limítrofes apresentadas, o filme finda com um sopro de esperança,
representado pelo nascimento do trigo na região atingida, algo que se
acreditava que não ocorreria senão em 80 anos e com a volta do nascimento do
cabelo de Gen. Cumpre ressaltar que mesmo que as imagens que representem a
realidade pós-bomba se encontrem longe de um realismo documental em animação ao
estilo de Valsa com Bashir, talvez
se torne o que mais efetivamente se aproximou de tal representação, algo na
maior parte das vezes sabiamente sequer tentado pelo universo do filme de ação
ao vivo.Talvez, mesmo descontados os momentos de intenso pathos ou mesmo manipulação emocional, a grande força do filme
resida justamente na forma balanceada com que consegue equilibrar os
sentimentos humanos, variando da nobreza ao egoísmo. Foi seguido por outro
longa, três anos após, que retrata a realidade de um Gen agora adolescente,
tratando de crianças órfãs da guerra, porém dirigida por outros realizadores.
Nakasawa certamente fez uso de muita de sua própria experiência de garoto de 6
anos em Hiroxima à época do bombardeio para escrever seu roteiro. A mesma história já fora levada às telas em
três filmes produzidos entre 1976 e 1980 e voltaria a sê-lo em 2007, como
mini-série de TV, ambas filmadas em ação ao vivo. Mad House/Gen Prod. para Kyodo Eiga Zenkoku Keiretu
Kaigi. 83 minutos.
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