Filme do Dia: Sem Ursos (2022), Jafar Panahi
Sem Ursos (Khers
Nist, Irã, 2022). Direção e Rot. Original Jafar Panahi. Fotografia Amin
Jafari. Montagem Amir Etminan. Figurinos e Maquiagem Hasibe Seçil Kapar, Leyla
Siyahi & Ülker Çetinkaya. Com Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobasheri,
Bakhtiyar Panjeei, Mina Kavani, Narges Delaram, Reza Heydari, Javad Siyahi,
Amir Davari, Darya Alei.
O
cineasta Jafar Panahi (Panahi), se encontra em um vilarejo próximo da fronteira
com a Turquia, Joban, de onde coordena as filmagens de uma produção dirigida
por ele, contando o drama de um casal, Bakhtiar (Panjeei) e Zara (Kavani),
entre partir ou não para Paris, com passaportes falsos. Enquanto isto, sua
permanência na pequena vila é cada vez mais tensionada, desde que um trio o
visita, afirmando que uma moça, Gozal (Alei), quando nasceu, teve seu cordão
umbilical cortado em nome de seu futuro marido, Jacob (Siyahi), mas que ele a
teria fotografado com outro, um namorado, Solduz (Davari).
Começando
por seu belo início, partindo de algo trivial – nada que não poderia ser
observado em qualquer telejornal cotidiano – para uma poética tão cara à
filmografia iraniana já há algumas décadas, pois assistimos a tensão entre o
casal Zara e Bakhtiar como se este fosse de fato o filme a ser seguido e um
recuo à tela do computador de Panahi, nos damos conta de e tratar de uma
produção cinematográfica dirigida à distância por ele. A seu modo, embora não
sendo nenhuma novidade (basta lembrar a deliciosa abertura de Contrastes
Humanos, de Preston Sturges, dos idos dos anos 40), há uma engenhosidade
criativa, pois aqui – e não apenas por isso, pois é uma bela cena, ponto! -
associada a uma atualização dos processos de produção de um filme, ao mesmo
tempo se referindo a situação política marginalizada do próprio cineasta no
país (embora, caso não busquemos pesquisar para além do próprio filme, não se
sabe se houve uma flexibilização da prisão doméstica do realizador, já que é ao
menos o seu segundo longa no qual já é observado fora do seu ambiente
doméstico, tema de seu Isto Não é um Filme). E é dessa situação política
que talvez também nos fale seu título, aparentemente uma fala relativamente
pouco importante na trama, de um morador local, que lhe avisara ser melhor
andarem juntos um trecho, por conta da possibilidade da presença de ursos, para
logo depois lhe afirmar ser um trajeto seguro, sem ursos. Seria uma alegoria do
próprio Panahi, apesar de algum grau de perigo, aparentemente isento de
vivenciar alguma violência por sua projeção internacional (ganhador do Prêmio
Especial do Júri, em Veneza, por este filme, por exemplo)? Mas testemunhando à
violência de perto – caso do bárbaro assassinato, seu resultado observado por
boa parte da comunidade ao final, e também por um Panahi batendo em retirada.
Panahi, aliás, é um mediador/potencializador de tensões, dos dois dramas
paralelos, do trio em questão que movimenta a pequena comunidade, tendo como
pivô a pretensa fotografia que teria sido tirada pelo realizador, apagada ou
não de sua câmera. Teria que voltar à imagem para talvez se bater o martelo,
algo impossível em uma sala de cinema, embora como um próprio personagem duplica
o que se já teria pensado, isto seria o menos importante, e mais a encenação de
uma jura religiosa, que Panahi se nega em última instância e ainda gera a fúria
de quem se encontra lesado na situação, Jacob, ainda solteiro aos 30 anos, após
o cineasta estranhar o costume do cordão umbilical. E também dos atores
observados em seu filme, no qual a atriz realiza um desabafo, saindo de sua
personagem e sumindo até ser encontrada posteriormente após ter se suicidado,
numa vinculação entre real e ficção bem menos feliz que a apresentada
inicialmente pelo filme. E, para todos os efeitos, se das duas tramas aqui
observadas em paralelo – a do filme dentro do filme de longe menos interessante
e bem resolvida, diga-se de passagem – duas mortes trágicas emergem, uma delas
diretamente vinculada a Panahi e outra com um personagem ao qual foi
indiretamente vinculado, embora advenha de uma espécie de Deus Ex Machina
social, não deixa de existir uma centralidade egóica em sua personalidade. O
diretor, se aproximaria mais do paradigma de Truffaut em Noite Americana,
comedido, parcimonioso e equilibrado para com tudo e todos, quando a separação
entre caráter e espírito artístico empreendedor se encontrava posta de antes,
nos estertores do cinema clássico americano, com Assim Estava Escrito.
E, ainda vinculado a isto, nenhum outro filme do realizador havia explorado
tanto a si próprio enquanto personagem.
Se as habitações rústicas da população iraniana distante das cidades
fora fartamente explorada pelo cinema iraniano (seu exemplo provavelmente mais
ilustre Através das Oliveiras) aqui traz uma elaboração menos ingênua ou
meramente descritiva da sociedade tradicional. Os conflitos, maledicências e
brigas são gestadas por um sistema que as pretende igualmente solucionar pelo
mesmo viés, o da tradição, no caso recorrendo ao Alcorão, embora haja um peso
para os indivíduos, sobretudo as mulheres – mesmo que paradoxalmente, muito
pouco se veja da que se tornou motivo de disputa dos dois homens.
Contemporaneamente a este, quem faz um uso criativo do filme-dentro-do-filme
sem tampouco avisar inicialmente e numa relação mais complexa e ambígua é Cerrar
los Ojos, de Victor Erice. |JP Prod. para Celluloid Dreams. 106 minutos.![]()

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