Filme do Dia: Na Cama e no Sofá (1927), Abram Room

 


Na Cama e no Sofá (Tretya Meshchanskaya, URSS, 1927). Direção Abram Room. Rot. Adaptado Viktor Shklovskiy & Abram Room, a partir do conto de Shklovskiy. Fotografia Grigori Giger. Dir. de arte Sergei Yutkevich & Vasily Rakhals. Com Vladimir Fogel, Nikolai Batalov, Lyudmila Semyonova, Leonid Yurenev, Yelena Sokolova, Mariya Yorotskaya.

Mais um dia de trabalho. Liuda (Semyonova) é acordada pelo marido, Kolia (Batalov), a por o gato de estimação de ambos sobre ela. Ele trabalha na reforma do Teatro Bolshoi. Quem se aproxima da praça é seu melhor amigo, com quem combateu a guerra junto e recém-chegado em Moscou, Volodia (Fogel). Uma atração surge de imediato entre Volodia e Liuda. Kolia não só não percebe nada, como ainda viaja, plenamente consciente na fidelidade da esposa. Mas esta não resiste aos encantos do recém-chegado, que a leva a passear de avião e ao cinema, onde há tempos não pisava. Quando Kolia retorna de súbito, quem lhe conta tudo é Volodia. Ele decide abandonar a casa. Mas é convidado a retornar, pois está sem moradia, por Liuda. Porém, há uma tensão entre ambos, que se agrava quando Liuda se descobre grávida. Kolia decide que ela abortará. Liuda, no entanto, acaba por ter outros planos.

É interessante o modo como Room articula um tema bastante tradicional do drama (teatro, romance, cinema), inclusive execrado por contemporâneos seus, como Vertov, o do triângulo amoroso, a partir de uma disposição estética devedora sim, das inquietações artísticas de seus colegas mais renomados, mas tampouco deixando de lado outras incorporações. Assim, o filme inicia com uma estrutura semelhante ao de uma sinfonia urbana, apresentando uma Moscou ainda dormindo, o que se espraiará para o casal principal e, por extensão, ao seu gato de estimação. Porém, Room o faz com uma poética própria, bem menos devedora da montagem acelerada da experiência mais próxima – e de longe mais famosa – neste quesito, O Homem com a Câmera. É como se ele buscasse impregnar as imagens com o mesmo vagar com o qual as pessoas fossem aos poucos acordando outra vez para a vida. E o faz com um tino fotogênico perceptível, tirando partido seja das esculturas que servem como adereços, e da altura, com a qual os trabalhadores a reformarem o Bolshoi, encontram-se, como de um sentimento de presença temporal naquele momento e naquele espaço bastante incomuns à vanguarda russa. Fazendo-nos sentir um pouco na pele do futuro impressor de jornais, recém-chegado à cidade, a adormecer sob um sol entre presente e escondido por trás do gigantesco obelisco. Quando ainda não sabemos qual a relação, se há alguma, entre ele e o casal que acompanhamos até então. Por outro lado, a montagem expressiva, faz-se presente seja na mais trivial cena do exercício com pesos do marido, seja sobretudo na cena de montagem disparada que acompanha os linotipos a imprimirem em velocidade expressa, os jornais e revistas, bastante similar, na dinâmica a exaltar todo o conjunto de aparelhagens, a cenas do célebre filme de Vertov. Porém, há sempre um toque encantador de um acaso aberto a fotogenia e a leveza, como é o caso do cabelo de Volodia ouriçado como uma cacatua. Ou a nos fazer rir,  quando se banham, a mulher no chuveiro, o marido em um samovar, o gato com sua língua. É como se assistíssemos a obra de alguém jovem, potente de vida. E tão relevante quanto tudo isso, uma magnífica disposição dos atores, a expressarem com tanto viço e medida adequada a tensão sexual e o desejo a ponto de dar o bote, tanto o de Volodia quanto o de Liuda, neste quesito afastando-se do papel bastante convencional ao qual ela é reservada no cenário doméstico, a preparar a comida ou arrumar a mala do esposo. Por outro lado, tem-se a cena do “beijo romântico” tascado por Volodia em Kolia, achando se tratar de Liuda. E uma das maiores graças do filme, acorde a sua proposta, é a de conseguir se afastar, o quanto possível, da retórica ideológica propagandística a abraçar, em maior ou menor medida, todos os maiores nomes do cinema, e provavelmente das outras artes, de então, na União Soviética.  Dentre as singelezas que compõem um todo interessante, está o próprio título, a divisar os espaços de quem é da casa, e do visitante, e também, é claro, o leito conjugal. E a reversão de status de quem vai para o sofá após o caso consumado e o marido ter voltado. Ou seja, o tema pode ser típico, mas a forma de interpretá-lo é franca, longe de machista, ao privilegiar o desejo da mulher e leve. Semyonava está encantadora e bem poderia ser a versão russa, mais robusta, de Louise Brooks . Há determinado momento, quando Liuda observa os dois, parece planejar uma história à três. Talvez fosse sua intenção, mas tinha que lidar com dois homens um pouco mais limitados que ela. Volodia, expressa algo de controle, inclusive físico, sobre ela, o que o próprio marido jamais o havia feito, além de aceitar com relativa resignação a relação entre seu melhor amigo e sua esposa. Portanto, até se espera um retorno dela ao marido, pois a comédia enquanto gênero tende a ser conservadora, mas o filme não é somente uma comédia e o final consegue ser deveras surpreendente, demonstrando uma abertura para vida comovente por parte de Liuda, vivida com bravura e mais talento que a mais famosa contemporânea Brooks. Ela teria vida longa, mesmo com filmografia não tão extensa, enquanto seus pares masculinos teriam morte trágica poucos anos após, Batalov por tuberculose e Fogel suicidando-se. Destaque interessante, inclusive se pensado em termos alegóricos, é Kolia estar trabalhando na reforma do Bolshoi, símbolo da tradição artística russa, que Vertov busca “destruí-lo” através do choque de imagens em seu filme de dois anos após. |Sovkino. 86 minutos. 

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