Filme do Dia: Encurralado (1971), Steven Spielberg

 


Encurralado (Duel, EUA, 1971). Direção Steven Spielberg. Rot. Adaptado Richard Matheson, a partir de seu próprio conto. Fotografia Jack A. Marta. Música Billy Goldenberg. Montagem Frank Morriss. Dir. de arte Robert S. Smith. Cenografia Sal Blydenburgh. Com Dennis Weaver, Jacqueline Scott, Eddie Firestone, Lou Frizzell, Lucille Benson, Tim Herbert, Shirley O’Hara, Gene Dynarski.

David Mann (Weaver), em viagem de negócios, é aterrorizado com um motorista de caminhão que passa a persegui-lo com obstinada insistência...

Numa época marcada por filmes referenciais a também tematizarem à insegurança masculina diante das mudanças provocadas pela Revolução Sexual, a exemplo de Sob o Domínio do Medo, Spielberg traz um verdadeiro tratado sobre a paranoia masculina, personificada na patética figura do David de Weaver, podendo, inclusive, ser levado menos ao pé da imagem que como uma fantasia delirante de um sujeito a quem nem as crianças sentem a mínima contenção com relação a estarem diante de um adulto. E o faz partindo da prata da casa da cinematografia americana, indo da obsessão do perseguidor diante do perseguido, como o Coiote e o Papa-Léguas de Chuck Jones, mas também bastante de Hitchcock, trazendo para a centralidade ou mesmo integralidade de todo o filme, o que era trabalhado numa sequência a ser lembrada em um filme do cineasta britânico radicado nos Estados Unidos (como em Intriga Internacional). O que pode ser percebido na sua magistral cinematografia, independente de pequenas falhas como a sombra da aproximação da câmera sobre alguns dos filmados, e música. No caso dos desenhos da Warner, até mesmo os pulos de satisfação com a vitória suada e sangrada, mais parecem ser os de um personagem do núcleo de animação do citado estúdio. E é quase como esperássemos emergir das cinzas da lataria destroçada do caminhão, seu motorista para demarcar, uma vez mais e ao infinito, e selando de vez o irrealismo de tudo,  a substituição de uma segurança efêmera, logo abalada por um novo motivo de precariedade. Nesta fantasia sob a forma de pesadelo, não falta sequer uma olhada quase voyeurística (como não lembrar Scorpio Rising) de David em direção aos caminhoneiros de masculinidade que parece tão natural quanto o avental da garçonete que os serve, procurando as botas do suposto motorista-demônio a atormentá-lo – e a câmera não se furta em deslizar pelo corpo do observado com a mesma minúcia fetichista do filme de Kenneth Anger. Assim como o retorno do olhar, sempre coletivo, a demarcar seu status de corpo estranho dentro de uma sociedade aparentemente pacificada em seus papéis. É provavelmente o melhor filme de Spielberg. Ou ao menos o que melhor traduz sua luta do bem contra o mal, sem a necessidade de sentimentalismo ou até mesmo de qualquer elaboração dramática. E a psicologia, nesse sentido, emerge mais como um traço de seu protagonista corporificado na figura deste Outro ameaçador, que como a elaboração naturalista convencional de 99,9% dos filmes dramáticos. Nem mesmo temos acesso ao rosto do antagonista, quanto mais da motivação de ter escolhido David como bode expiatório. Mas, é claro, sem abdicar, da lógica do espetáculo, observada no gozo hitchcockiano com o qual o filme é montado. Impressionante, ainda mais em se tratando originalmente de um telefilme. E cujo estilo talvez seja seu maior aliado, assim como o ocasional acesso aos pensamentos de David. E o olhar, assim como a reversão dele são tão ou mais fundamentais que as virtuosas cenas de perseguição e embate nas estradas. Aliás, toque de mestre, adapta um conto que utiliza como base uma pedra ancilar da cultura americana, a subcultura do automóvel, fazendo uso de quase tudo que tem direito neste quesito (rodovias, ultrapassagens perigosas, planos enfatizando o retrovisor, desvios, comércios de beira de estrada, acidente, defeitos nos veículos, pedidos de carona). Para a versão cinematográfica, por conta de sua curta duração, o estúdio pediu que Spielberg filmasse novo material, incluindo cenas como a da ligação de David para a esposa, observada boa parte da perspectiva de uma mulher usando uma máquina de lavar ou de um motorista de ônibus com problemas com seu veículo escolar repleto de crianças. |Universal Television. 90 minutos.


 

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