Filme do Dia: My Father and Me (2019), Nick Broomfield

 


My Father and Me ( Reino Unido, 2019). Direção Nick Broomfield. Rot. Original Nick Broomfield & Marc Hoeferliin. Música Nick Laird-Clowes. Montagem Marc Hoeferlin & Joe Siegal.

Numa busca de ajuste de contas possível em sua relação com seu pai, já falecido, Broomfield envereda por um projeto não apenas de longe mais pessoal que a maior parte de seus documentários, como igualmente trazendo consigo a memória social de uma época, percebendo o quão indissociável é da constituição do indivíduo “investigado” e as inevitáveis lacunas trazidas numa relação entre pai e filho. O documentarista reconstitui as diferenças marcantes entre o modo como cada um encarava o fotografado. Fotógrafo virtuoso a serviço das grandes companhias de engenharia industrial ou automotora, Maurice tinha fotos para o filho demasiado estilizadas e portadoras de muito pouco das condições dos trabalhadores. Estes surgem nas fotos feito acessórios coadjuvantes da grandeza técnica, numa percepção próxima da Escola Documental Britânica. A carreira do filho no campo cinematográfico documental, por sua vez, era olhada com as mesmas reservas observadas em relação a foto de um burro por trás da cerca, que o pai reclamara justamente pela presença do gradil, o objeto chamativo para seu fotógrafo ainda criança. E vez por outra, mesmo admitindo o orgulho que sentia do pai quando criança, Broomfield não apaga nunca as diferenças entre ambos, inclusive na forma de observar a classe trabalhadora, postando imagens de seu Behind the Rent Strike (1979). Ao mesmo tempo há um ponto pacífico em ambos – em idades similares percebiam a escola como um espaço restritivo de seus sonhos. E mesmos os pontos tensionados existentes entre os dois ganham uma camada relativizadora de um terceiro olhar, o da ex-companheira de Broomfield, Joan Churchill, referindo-se ao descuido com que filmava Juvenile Liaison (1976), um dos mais polêmicos documentários do realizador, em relação à forma bem mais calculada do que é filmado por Broomfield, aproximando-se, por esta via, de aspectos da fotografia de seu pai aos quais tanto criticara. E algumas das fotografias do próprio pai, com um olhar de maior protagonismo dos trabalhadores são apresentadas em momento posterior do documentário. E o momento no qual Broomfield inicia a filmar seus documentários é justamente o do desmonte (por vezes literal, como apresentado em imagens) da estrutura fabril inglesa registrada com tanto zelo pelo pai.  De sua mãe temos acesso mais através de imagens algo etéreas, de um figura emblematicamente enigmática. Era refugiada judia, e sua morte relativamente precoce traz um peso aos trechos de filmes domésticos nos quais surge, algo semelhante ao efeito das da mãe de Salles, também em filmes domésticos em No Intenso Agora. Outros fortes traços de finitude são a residência no campo, dos tempos da infância do realizador, atualmente em ruínas, e os próprios negativos do pai, intocados por mais de um quarto de século, em estado de deterioração, como demonstra uma série de fotos. Aliás, sua narrativa seria logicamente bem mais empobrecida se não houvesse um arsenal de imagens de arquivo impensáveis, em dimensão semelhante, em um país subdesenvolvidos, constituído por filmes domésticos, institucionais, fotografias do próprio Maurice (além de gravações em áudio no qual comenta sobre aspectos de sua vida e do qual não sabemos se colhidas para este projeto ou algo similar anteriormente) e se chegando a imagens em cores, como os filmes amadores, de um cinejornal trazendo os tios de Nick alimentando o filho e também um filhote de urso, e apresentando um esquilo enorme, tirado de uma caixa. E também do pai sendo entrevistado e detalhando particularidades técnicas de material utilizado em algumas de suas fotografias. E uma foto no qual é flagrado no mesmo ambiente, embora há certa distância, da Rainha Elizabeth. A decadência de seus rastros de trabalho se encontra associada a um período de declínio pessoal de Maurice, após a morte da esposa. No documentário uma reversão se dá quando Maurice encontra um novo amor, Suzy, volta a se interessar pela vida e, mesmo em período posterior, sua obra passou por um processo de restauração, igualmente presente no filme.  Ao mesmo tempo não deixando passar os ressentimentos que os distanciaram por um tempo, dá-se enorme destaque às fotos do pai, a maioria de beleza surpreendente. E, um toque final de reaproximação entre pai e filho, está na  seleção das fotos de Maurice para exibição pública, algo nunca pensado por ele, e que ganharia vários espaços de exibição após seu lançamento, com a presença do próprio autor das fotos.  Por sua vez, Maurice gostava bastante de Aileen: Vida e Morte de um Serial Killer (1987), seu filme favorito do filho, por mostrar a humanidade de sua protagonista e a futilidade de sua execução.  O clima de suprema paz familiar, ao final, é enfatizada quando se inclui a terceira geração, com o filho de Nick, Barney, filmando o pai, e sobretudo o avô, assim como fotografados os três. Paralelos podem ser traçados com um retrato mais passivamente admirador das façanhas paternas em um momento específico, a Segunda Guerra, por outro documentarista relevante, Robert Drew, e seu Dois Homens e uma Guerra, no qual tampouco estabelece este lugar de fala seu ou problematiza sua relação com o pai. Uma panorâmica aérea que demonstra o enorme rastro de destruição sobre Berlim ao final da guerra talvez seja a mesmo que foi utilizada por Helma Sanders-Brahms em Alemanha, Mãe Pálida. E o mesmo vale para outra, utilizada com mais parcimônia no filme ficcional alemão, em que um grupo de homens e mulheres vai passando um balde, e aqui observamos uma mulher acenando para a câmera, de forma aparentemente pouco simpática de estar sendo registrada (e muito menos ainda para a posteridade) naquela situação. |Lafayette Films para Kew Media Group Dist./BBC. 95 minutos.

 

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