Filme do Dia: Sangue de Pantera (1942), Jacques Tourneur

 


Sangue de Pantera (Cat People, EUA, 1942). Direção: Jacques Tourneur. Rot. Original: De Witt Bodeen. Fotografia: Nicholas Musuraca. Música: Roy Webb. Montagem: Mark Robson. Dir.de arte: Albert S.D´Agostino & Walter E. Keller. Cenografia: A.Roland Fields & Darrell Silvera. Figurinos: Renié. Com: Simone Simon, Kent Smith, Tom Conway, Jane Randolph, Jack Holt, Henrietta Burnside, Alec Craig, Eddie Dew.

Oliver Reed (Smith), rapaz boa praça acaba se interessando pela introspectiva e misteriosa Irena (Simon), garota sérvia que não consegue se livrar das obsessões com relação à mitologia de seu país. Reza a lenda que sua terra foi invadida por adoradores do demônio, que se refugiaram nas montanhas com a chegada dos cristãos. Irena acredita que ela própria possui o espírito da pantera, associado com seu povo. Reed, cada vez mais angustiado com a esposa, procura a ajuda do psiquiatra Louis Judd (Conway) e, como Irene não procura seguir o tratamento, interessa-se cada vez mais pela colega de trabalho Alice Moore (Randolph). Moore passa a acreditar nas lendas contadas por Irena quando se vê perseguida por um grande animal que ruge. A certeza vêm quando Oliver decide pedir o divórcio a Irena e essa, transformada em pantera, ameaça Oliver e Alice no escritório. A vítima da pantera vem a ser, no entanto, Judd, que não resiste aos seus encantos.

Esse que talvez seja merecidamente o mais célebre dos filmes de baixo orçamento produzidos por Val Lewton nos anos 40 se destaca tanto por sua infindável riqueza de simbolismos quanto pela narrativa austera e formal, certamente um marco nos filmes de suspense e horror por sua precoce modernidade. Com relação aos simbolismos podem ser feitas referências múltiplas à dimensão da sexualidade, de um dos modos mais inventivos até então realizados, indo do temor com relação à própria sexualidade agressiva na figura da protagonista até a histeria da competição entre mulheres. O filme é tão sexuado que até mesmo a habitual figura cerebral do psiquiatra/psicanalista tão em voga na produção da época acaba sendo vítima do desejo, sendo o próprio filme uma espécie de vingança irônica dos temores irracionais recalcados diante da razão. Não há como não fazer menção tampouco ao temor da sexualidade feminina por parte do imaginário masculino, sobretudo em um universo de crescente emancipação da mulher. De qualquer modo, o filme antecipa parcialmente a opção de O Bebê de Rosemary (1968) ao se centrar no cotidiano contemporâneo das ruas de uma grande cidade ao invés das narrativas míticas de castelos no passado que foram o foco das produções da Universal na década anterior – ainda que aqui há referência mítica seja proveniente da mesma mitologia do Leste Europeu arcaico e distante e a atmosfera seja mais próxima do sombrio gênero noir que do realismo. Entre outros trunfos do filme se encontram uma percepção gráfica do elemento visual semelhante a do universo dos quadrinhos, presente tanto na cenografia quanto na iluminação e até mesmo na forma dos personagens se moverem, como na excepcional cena em que Alice, sentindo-se acuada, pula na piscina. Em outro momento brilhante, uma outra “felina” acaba reconhecendo uma alma idêntica a sua na figura da noiva representada por Irena que apenas desejaria ser uma americana normal que realiza a felicidade de seu homem. Aliás, algo do temor com relação a sexualidade da protagonista reassoma com esse súbito reconhecimento, de inclinação lésbica. É notável, portanto, a sua ironia subliminar com os valores ideais da sociedade americana de família, felicidade e normalidade, algo que seria retrabalhado posteriormente por cineastas como David Lynch, em seu Veludo Azul. Assim como o fato de que durante a maior parte do filme não se revela o ser que persegue os personagens, fato frisado por Scorsese em sua Viagem Pessoal pelo Cinema Americano – Parte 2, intensificando o suspense, algo que seria posteriormente incorporado por cineastas como Spielberg em seus filmes. Tampouco se pode esquecer a magistral presença de Simon, atriz que já atuara em muitos dos filmes de Marcel Carné e Jean Renoir, que somente pôde estar presente nessa produção por conta de se encontrar refugiada da Segunda Guerra Mundial, o cineasta ser igualmente francês e existir uma liberdade criativa maior que os padrões usuais da época por parte do produtor Lewton. Devido ao extremo sucesso comercial do filme à época, sua fortuna só veio a ser reconhecida pela geração de Scorsese, sendo inclusive refilmado 40 anos depois por Paul Schrader, com Nastassja Kinski como protagonista e longe de conseguir o mesmo charme e sutileza. National Film Registry em 1993. RKO Radio Pictures. 73 minutos.

 

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