Filme do Dia: Pedaços de uma Mulher (2020), Kornél Mundrczó
Pedaços de
uma Mulher (Pieces of a Woman, EUA/Canadá/Hungria, 2020). Direção:
Kornél Mundrczó. Rot. Original: Kata Weber. Fotografia: Benjamin Loeb. Música:
Howard Shore. Montagem: Dávid Jancsó. Dir. de arte: Silvayn LeMaitre &
Mette Haukeland. Figurinos:
Rachel Dainer-Best & Véronique Marchessault. Com: Vanessa Kirby, Shia
LaBeouf, Ellen Burstyn, Iliza Shlesinger, Benny Safdie, Sarah Snook, Molly
Parker, Steven McCarthy.
Martha
(Kirby) realiza um parto em casa, com a ajuda do marido Sean (Labeouf), mas
quando as contrações aumentam, a parteira que se comprometera se encontra em
outro procedimento e envia uma colega, Eva (Parker). Após bastante sofrimento,
a criança nasce, mas morre asfixiada pouco depois, sem que a equipe de
emergência chamada consiga mantê-la viva ou ressuscitá-la. O episódio se torna
um divisor de águas na relação de Martha com Sean, que não avança. Sean fica do
lado da família de Martha, e sobretudo de sua mãe, Elizabeth (Burstyn), que
movem um processo milionário contra Eva. A advogada de defesa, Suzanne (Snook),
mantém uma relação com Sean, e a percepção distinta do episódio por parte de
Martha, faz com que os atritos com o marido e a mãe se tornem crescentes. Ela
resolve, no entanto, participar do julgamento, ao contrário de Sean, já
separado dela, e após retornar de um estúdio em que revelara um filme com
registros da bebê ainda em seu ventre, decide por tomar uma posição definitiva
sobre o caso.
Embora o
inglês não seja uma língua ausente de várias produções anteriores do realizador
– e ele já possuía um currículo com duas dezenas – aparentemente se trata de
sua primeira produção não só em língua inglesa, mas contando com atores de
trajetórias identificadas com Hollywood e/ou o cinema de autor internacional. E
a impressão que se tem ao final é que se trata menos de uma somatória entre
tradições mais facilmente reconhecíveis no cinema de arte europeu e sua
abordagem mais leve e de identificação mais fácil com o público do cinema
norte-americano comercial, que uma previsível gradação de um para o outro. De
fato, do início até próximo do final, essa produção não parece fazer grandes
concessões em sua representação da deterioração das relações que circundam
Martha e, embora de cada um se observe algum vislumbre do porque pensam e agem
dessa forma, parecem ainda assim reduzidos diante da “contaminação” do que é
narrado pela proximidade com sua protagonista. Do ex-marido pode-se até se
suspeitar do seu caráter, porque a oferta de uma provável generosa quantia pela
sogra para que suma do mapa, aparentemente é aceita, já que não é observado
participando do julgamento, ficando enfatizado que o seu meio distante de
trabalho e modos rudes são os de alguém de baixa renda, ao contrário da família
de Martha. E sua aposta nele certamente possui um reflexo das tensões imemoriais
com a família, sobretudo sua mãe, numa tocante intepretação da veterana Burstyn
(A Última Sessão de Cinema), que entra para o rol das mais marcantes de
sua prolífica carreira. Trocando-se os sexos, uma sensação de desconforto de Martha com o meio de nascimento similar a
do personagem de Jack Nicholson em Cada Um Vive Vive Como Quer. Porém, a
prova de fogo se imagina que será o desfecho do drama, vivido com extrema
bravura por Kirby, menos talvez na sua longa e cansativa cena do parto próxima
do início, que na sua tocante busca de encontrar motivos que não a façam
afundar na depressão ou auto-condescendência do marido, esse a buscando no
sexo, e no retorno à bebida após anos, assim como nos cigarros. Porém sua fala
“irregular” ao juiz no meio dos protocolos faz chacoalhar não apenas o
julgamento em si, de uma forma quase tão irreal quanto às que advinha em
situações similares nos tempos do cinema clássico, e também “oriunda do
coração”, mas também a ausência desse momento catarticamente melodramático de
ajuste de contas (e consequente superação) com a figura materna; noutras
palavras, Martha assumindo por completo sua figura adulta. Aqui pode-se apostar
em duas hipóteses. A que fica do lado da mãe e pensa que ela foge de encarar de
frente o que ocorreu até essa virada, mais tipicamente hollywoodiana, ou a que
provavelmente seria a pensada pelo realizador, que não a observa como sendo de
ruptura, antes de continuidade com suas posições desde o início em relação ao
julgamento em questão, só que agora expressando em todas as letras e em público
o porque de tal atitude. Evidente que mesmo essa segunda hipótese trai forte
ranço hollywoodiano, ao apontar o páthos (e não um páthos qualquer, mas por
outra mulher, numa forte alusão a sororidade tão valorizada no momento da produção
do filme) e não qualquer questão técnica, como a fundamental para a resolução
dramática de sua elaboração narrativa, e no campo ficcional, do julgamento.
Depois, não falta o momento “página virada”, em que Martha passa a aceitar a
mãe – e o momento dessa lembrando de seu sofrimento quando criança em gueto
judeu, na cena que provavelmente vai ser a
mais incensada da interpretação de Burstyn pelos críticos, mas se
encontra longe de ser a quem semeará essa revisão – e também ser de fato mãe,
num quadrante que agora já não é mais somente filha, mas talvez tenha que ser
mãe não apenas de sua filha, como da própria genitora, já apresentando indícios
de Alzheimer. E, outra piscadela ao público contemporâneo, sem que nenhuma
figura masculina emerja como figura paterna. Scorsese foi um dos
produtores-executivos. Baseado em uma história vivenciada pela roteirista e seu
companheiro, que vem a ser Mundrczó. BRON Studios/Creative Wealth
Media Finance/Little Lamb para Netflix. 127 minutos.
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