Filme do Dia: O.J.:Made in America (2016), Ezra Edelman
O.J.:Made in America (EUA, 2016).
Direção: Ezra Edelman. Fotografia: Nick Higgins. Música: Gary Lionelli.
Montagem: Bret Granato, Maya Mumma & Ben Sozanski.
Documentário de monumental metragem
(tornou-se o filme mais longo a ser indicado a um prêmio da Academia) que se
volta para a vida e carreira do astro do futebol americano O.J.Simpson como
plataforma, igualmente, para pensar uma questão que é o calcanhar de aquiles de
toda a sociedade norte-americana: a racial. Simpson rapidamente se transforma
em celebridade nacional nos últimos anos da década de 1960, quando suas
performances apresentam uma característica que demonstram uma virtuosidade
nunca dantes vista na categoria. E, com a celebridade, sua recusa em abraçar
qualquer referência a questão racial, que vive dias de grande intensidade,
incluindo as ruidosas manifestações, rudemente combatidas pelas polícia e a
morte de Martin Luther King (anunciada por Robert Kennedy para um estádio
lotado, observando-se o ruído coletivo de consternação do impacto imediato da
notícia) em oposição completa ao outro astro esportivo negro mais popular do
período, Muhammed Ali. Simpson afirma que quer ser observado como o talento que
é, independentemente de sua cor e talvez em grande parte por conta dessa
postura se torna o primeiro negro a ser garoto-propaganda de marcas importantes
da indústria americana, como a Chevrolet. Sua relação com a segunda mulher,
Nicole Brown, de aparência de “conto de fadas”, logo demonstra ser a de
constantes agressões, chamadas a polícia por parte dela e, por fim, o episódio
do assassinato dela e de um jovem modelo, Ron Goldman, quando já se encontrava
separada de Simpson. Os preparativos para o julgamento. Um júri popular
composto por 75% de mulheres negras. O.J. substitui todas as fotos que havia
com celebridades e amigos brancos, por personalidades negras. A esperada
absolvição de O.J., apesar de todos os indícios que apontavam para sua culpa
são comemorados de forma superlativa, sobretudo pela comunidade negra
norte-americana. Os anos posteriores ao julgamento, com O.J. sofrendo uma ação
civil por conta do pai de Ron Goldman, Fred, ganha pela família, em que ele
devia pagar 33 milhões de dólares aos Goldman, assim como a família de Nicole
Brown. Vivendo em crescente decadência, O.J., é condenado exatamente 13 anos
após o veredito sobre o caso Nicole Brown, por um incidente menor em um hotel
de Las Vegas, em 2007 e até o momento em questão, continua preso, com direito a
ter uma revisão de sua sentença em 2017.
De estrutura bastante convencional, o
documentário faz uso extenso de imagens de arquivo e depoimentos diretamente
para a câmera, sendo que muitas vezes observamos os depoentes para a câmera
algumas décadas mais jovens antes ou entremeando seus depoimentos para a equipe
do filme, em uma estratégia também bastante comum a esse tipo de documentário.
Faz tímidas sugestões no universo da reconstituição, longe do destaque e
estilização presente em um Errol Morris. O uso da música é trivialmente
incidental. Por mais que o caso de
Simpson sirva como pretexto para uma discussão sobre a questão racial nos
Estados Unidos, em alguns momentos parece que se assiste a um documentário
sobre outra temática, pois O.J. desaparece do foco por um longo tempo, e o documentário
passa a discutir os eventos ocorridos nos idos da década de 90 envolvendo as
agressões sofridas pelo caminhoneiro Rodney King por policiais de Los Angeles,
assim como o assassinato de uma garota que havia ido comprar um suco em um
mercado e os desdobramentos do caso King, além da ofensiva decisão de inocentar
os policiais que colocou Los Angeles em uma nova onda violência, similar a
vivida nos anos 60, quando do movimento pelos direitos civis. Esse “desvio” do
tema em questão, parece ser uma antecipação do próprio desvio de foco das
acusações bastante fortes contra O.J.Simpson em seu julgamento por advogados
que souberam capitalizar em cima da divisão racial. Mesmo não explicitando o
filme, tal como uma ficção, praticamente elabora um perfil psicológico que
senão justifica. elabora os motivos para a violência de O.J. com sua mulher. De
forma tópica, associada a questão da homossexualidade de seu pai. De forma mais
ampla, ao desde cedo não ter aceito a sua condição racial ou defendido a causa
negra, tentando anomalamente ser um branco em meio aos brancos e, inclusive,
abandonando sua primeira mulher, negra, por uma branca. Por outro lado, a
apresentação dos eventos que envolveram causas raciais anteriores que foram
injustas contra os negros e o acompanhamento maciço de parte da população do
deslocamento de O.J. seguido por várias viaturas policiais também pode
sinalizar para uma tentativa de “compensação” em O.J. dos eventos anteriores e,
ainda melhor, de todo o abismo social existente entre brancos e negros nos
Estados Unidos – em várias cenas negros são observados gritando “liberdade para
O.J.”. E, mais adiante, imagens de uma pequena multidão, incluindo brancos,
dando aparente apoio ao astro. Transmitida ao vivo, a perseguição ganha cores
de espetáculo midiático que, guardada as proporções, assemelha-se a que foi
vivida no Brasil contemporaneamente pelo episódio envolvendo a linha 174 no Rio
de Janeiro. Quando O.J. se aproxima de sua residência, seu carro atravessa
vários furgões de emissoras de televisão já estacionados, assim como vários
helicópteros filmam do alto. E é justamente nesse trecho que o filme apresenta
seu caráter de “entretenimento” ao máximo, com trilha sonora dramática, o
depoimento do policial que negociou com O.J. para o documentário, repetindo o
que dissera então afirmando o quão ele era importante – ele aparentemente
ameaçava se suicidar – e imagens de arquivo de seus anos de glória no esporte,
de manifestações de apoio ocorrendo no momento do cerco a sua casa, de sua
filha aliviada por saber que ele acabou de se entregar, de um locutor
televisivo a bordo de um dos helicópteros e
muito mais se sucedendo para acentuar
o verdadeiro pathos de uma sinfonia
em seu momento de “clímax dramático”. Portanto, se o filme ironiza com o
aberto sensacionalismo e exploração que o caso recebe da televisão sobretudo, a
rigor não foge desse espírito em sua própria estrutura, por mais que apresente
um quadro bem mais complexo, evidentemente, que o material ao qual se refere. E
talvez nenhuma cena corresponda mais ao senso de que tudo, ao final de contas,
torna-se motivo de “entretenimento”, seja a bizarra em que O.J. dança e se
diverte em um vídeo amador com uma música que faz referência jocosa ao próprio
caso em que foi acusado de assassinato. É impressionante observar que as
posições associadas a defesa e acusação se mantém impolutas mais de vinte anos
após o julgamento, reproduzindo o recorte racial que havia sido acusado por
pesquisas do período, em que a esmagadora maioria dos negros acreditava na inocência
de O.J., enquanto a esmagadora maioria de brancos acreditava ser ele
culpado. E que explícitos vieses raciais
haviam contribuído para o veredito, incluindo o gesto de um dos júris de
levantar seu braço em saudação que havia sido típica dos Panteras Negras e
simpatizantes nos anos 1960. E um
depoente afro-americano, o reverendo Mark Whitlock, afirma de forma sensata que não observa o
julgamento como uma vitória dos negros, mas como a vitória de um homem rico.
Nesse sentido, todo o ressentimento guardado por décadas, séculos de abuso e
exclusão, maus tratos, violência policial, dos americanos negros não seriam
redimidos a partir de uma catarse em um julgamento enviesado. E a brutalidade
de casos como o de Rodney King não apenas não se atenuou como, pelo contrário,
provocou ainda mais mortes por ódio racial a ganharem destaque nacional, que no
período anterior ao julgamento de Simpson.
De certa forma, poder-se-ia sintetizar essa produção como uma espécie de
parábola em que a raça salvou O.J. da situação mais complicada de sua vida,
mesmo que ele a tenha renegado ao longo do tempo. Ou ainda, de forma mais
pragmática e/ou cínica que a sua fama e riqueza – além do componente de gênero,
praticamente tornado irrelevante ao longo das disputas de representação e não
lembrado em um dos depoimentos importantes
- foi que de fato o salvou. E, ainda uma terceira possibilidade pode ser
acrescida a primeira, que a solidariedade racial tem limites, e após o segundo
envolvimento mais grave do ex-astro de futebol com a Justiça, ele deveria ser
julgado de forma individual, já que não se “redimiu” a partir da “dádiva” que
lhe foi dada com a absolvição dos crimes e o quase irrestrito apoio da
comunidade negra. E, de forma mais ampla, muitas questões podem emergir a
partir do que foi apresentado, incluindo uma reflexão que leve em conta
individualismo x pensamento sobre a coletividade, a figura estoica e heroica do
self made man tão caro aos valores
americanos e a enorme hipocrisia e contradições que pode se encontrar contida
no amálgama do Sonho Americano. ESPN/Laylow Films para ESPN Films. 467 minutos.
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