Filme do Dia: Os Deuses e os Mortos (1970), Ruy Guerra
Os Deuses e os Mortos (Brasil, 1970).
Direção: Ruy Guerra. Rot. Original: Ruy Guerra, Flávio Império & Paulo
Jose. Fotografia: Dib Lutfi. Música: Milton Nascimento. Montagem: Ruy Guerra
& Sérgio Sanz. Dir. de arte e Figurinos: Marcos Weinstock. Com: Othon
Bastos, Norma Bengell, Ítala Nandi, Nelson Xavier, Ruy Polanah, Jorge Chaia,
Freddy Kleeman, Mara Rúbia, Milton Nascimento, Dina Sfat.
Sul da Bahia, anos 1930. Homem sem
nome (Bastos) que foi baleado 7 vezes e sobreviveu luta para conseguir as
terras de cacau do Coronel Santana (Chaia), morrendo bastante gente envolvida
na peleja.
Se ainda havia alguma dúvida da
influência do Gláuber do recente O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro após a encenação épica em
locações naturais (e áridas), os figurinos,
as cores do processo fotográfico, a presença de Othon Bastos, a fala
direcionada para a câmera e os planos sequencias orquestrados por Lutfi, a descrença
radical se desfaz com a presença do símbolo da Shell, entrevisto logo após, e
no filme de Gláuber, em oposição, ao final. Engenhosamente, Guerra articula
cifras e estatísticas na voz de seus personagens, com efeito de alienação da
empatia convencional, já que proferidos em encenações que priorizam a profundidade
ou verdadeiros tableaux vivants. Se é verdade que os esgares, gritos e
manifestações de estados alterados de mobilidade traem uma aproximação com o
Cinema Marginal, a aderência à realidade do poder local e suas manifestações
bárbaras são tipicamente cinemanovistas. Os longos e elegantes planos-sequencia
filmados impecavelmente por Lutfi, por vezes acompanhando monólogos de
personagens em imóveis tão deteriorados quanto as relações sociais locais e o
próprio sistema cacueiro, abalado por revéses na sua representatividade
internacional, são talvez o atrativo maior de um filme em que conceber de forma
clara o enredo se torna praticamente desafio. Paradoxalmente, no entanto, demonstram sua essencialidade na composição
do efeito dramático, que talvez fosse melhor chamar de épico, na mesma medida
que os de Storaro para 1900 de
Bertolucci parecem ser mera apologia ao virtuosismo. Os anos 30 também foram
revisitados por outras produções do período como São Bernardo ou Joanna
Francesa, sendo que aqui um manto espessamente alegórico torna ainda menos
compreensível sua briga de poder entre famílias e interesses diversos. E não
deixa de ser curioso que Guerra escolha justamente a Bahia cacaueira dos 30,
fonte associada sobretudo com a literatura marcadamente realista de Jorge Amado, no máximo com algum ornamento sobrenatural, para compor uma obra que
passa um tanto longe dessa matriz. Há determinado momento até existe uma
indicação de um narrador interno de origem popular, mais um elemento forte da
filmografia glauberiana (sobretudo em Deus
e o Diabo na Terra do Sol), porém sua efetividade não se concretiza. A
música de Milton é um elemento que se afasta da estética musical dos filmes
daquele, com cânticos que não chegam a esboçar letras, algo lamuriosos e de
herança africana, bem típicos do compositor e adequados a postura
anti-naturalista e mística do filme e de seus personagens. Sua recusa ao
espetáculo e paixão pela encenação é demonstrada, talvez em mais que qualquer
outra cena, num longo plano em que observamos jagunços armados em todos os
quadrantes de uma praça e, pouco após, os observamos já mortos ou moribundos,
sem qualquer cena do confronto em si. Há uma aproximação possível com o western, uma vez mais na linha do recente filme de
Gláuber, inclusive na figura sem nome vivida por Bastos. Esse
tem grande interpretação como seu morto-vivo errante, quase um
Frankenstein (dado o ótimo trabalho de maquiagem) voltado para uma realidade
avessa à de sua criação original (árida, agrícola, subdesenvolvida), tornado
coronel ao final. Xavier, por sua vez, como o visionário Valu. Cia. Cinematográfica
Vera Cruz/CCFB/Daga Filmes/Grupo Filmes para Columbia Pictures do Brasil. 99
minutos.
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