Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#48: Carlos Diegues

 


DIEGUES, CARLOS
. (Brasil, 1940). O mais adaptável e, em última instância, o mais bem sucedido, dos diretores originais do Cinema Novo, Carlos Diegues, fez filmes interessantes mesmo nos anos mais sombrios da ditadura militar brasileira. Trabalhando constantemente à média de três ou mais filmes por década, foi capaz de completar até o momento 17 longas-metragem em mais de 50 anos como realizador. É uma figura bastante popular, conhecida carinhosamente como Cacá Diegues, e um autor comprometido que acredita na expressão pessoal em oposição ao autoritarismo tanto de direita quanto de esquerda.

Diegues nasceu em Maceió, capital do estado nordestino de Alagoas. Quando tinha seis anos, sua família mudou-se para os subúrbios de Botafogo, no Rio de Janeiro, onde cresceu. Estudou Direito na PUC católica e lá fundou um cineclube. Ainda na universidade, começou a escrever crítica de cinema e se encontrar com amigos realizadores que também o faziam, no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro. Nos idos dos anos 60 realizou uns poucos curtas em 16 mm, incluindo Domingo (1961), antes de dirigir o seu primeiro filme profissional em 35 mm, o curta Escola de Samba Alegria de Viver (1962), que seria incluído na antologia do Cinema Novo Cinco Vezes Favela. Diegues sempre foi interessado pela cultura afro-brasileira, mas este filme foi criticado como sendo paternalista em sua visão crítica do carnaval como uma espécie de ópio do povo, então com seu primeiro longa, Ganga Zumba (1964), realizado quando tinha 23 anos de idade, tentou de alguma forma corrigir este ponto de vista de fora. Após uma introdução em voz over a história dos quilombos - aldeias para escravos fugitivos - reconta o mais famoso deles, Palmares, que permaneceria livre por quase um século, e aprendemos sobre o rei banto chamado Zambi (*), "que havia transformado o local em um refúgio de paz e liberdade."

Nunca vemos propriamente Palmares ou Zumbi no filme, mas suas histórias são passadas entre os escravos que pretendem escapar, particularmente Antão (Antônio Sampaio), que se prepara para seu papel como futura liderança, assassinando um perverso capataz, com ajuda de sua amante Cipriana. Ao final do filme, em plano extremamente aberto, Antão, enquadrado em um ambiente idilicamente tropical de pedras, cachoeira e floresta tropical, é proclamado "Ganga Zumba", dirigindo-se a uma encosta distante ao fundo, com sua noiva e comitiva, presumivelmente a terra prometida de Palmares. As escolhas estilísticas de Diegues claramente pretendem denotar uma africanidade coletiva. Cenas de histórias sendo contadas, cantos e capoeira são invariavelmente filmadas à noite e estabelecem uma continuidade da cultura africana no ambiente brasileiro. Frequentemente os atores que interpretam os escravos são filmados à noite, e quando uma face de rocha não foi filmada ao fundo, um primeiro plano brilhante e cheio de figurantes foi complementado por um mais sombrio fundo. Diegues ele próprio não é negro, mas se poderia certamente argumentar que Ganga Zumba é não somente a afirmação mais bem realizada da cultura afro-brasileira na primeira onda do Cinema Novo, mas também a representação mais bem sucedida do diretor do próprio "objetivo" do novo movimento em seu manifesto, publicado na revista de cinema Movimento, em maio de 1962: "estudar em profundidade as relações sociais de cada cidade e região é uma forma de  expor criticamente, como em miniatura, a estrutura sócio-cultural do país como um todo."

Diegues seguiu Ganga Zumba, com dois filmes ainda mais desafiadores, A Grande Cidade (1966) e Os Herdeiros (1968). O primeiro combina os interesses da primeira fase do Cinema Novo no Nordeste, com a mudança de perspectiva do movimento para a vida urbana. traçando a experiência de quatro diferentes personagens nordestinos que se mudaram para o Rio, enquanto o último apresenta, alegoricamente, quarenta anos da história do Brasil. Após a experimentação de Os Herdeiros, Diegues passou a trabalhar com o modo sugerido por seus comentários a Rogério Sganzerla, em uma entrevista de 1966, durante a qual discute libertar o Cinema Novo, de seus "preconceitos juvenis" e criar uma nova forma de "espetáculo que misture política e humor, Shakespeare e a modinha de viola." Em Quando o Carnaval Chegar (1972), Diegues celebra as chanchadas e outras formas populares da cultura brasileira como forças libertadoras, e produziu sua primeira obra carnavalesca. Em Joana Francesa (1974), um bastante subapreciado e belamente fotografado filme, retornou ao modo crítico/histórico. Este filme segue o progresso de uma mulher francesa (interpretada pelo ícone da Nouvelle Vague, Jeanne Moreau) de madame de um bordel, em São Paulo à decadente e despótica dona de um canavial. Ambientado durante os anos 30, Joana Francesa (**) foca na auto-destruição de uma oligarquia agrária, incapaz de se adaptar aos projetos de industrialização do presidente Getúlio Vargas. Em sua narrativa linear e construção de um poderoso e dinâmico, ainda que ambiguamente considerado, personagem central feminino,  preconfigura o sexto longa e décimo terceiro filme do realizador, Xica da Silva (1976).

Baseado na vida da lendária escrava nas Minas Gerais do século XVIII, Xica da Silva foi, de longe, o mais bem sucedido filme de Diegues no Brasil, arrebanhando mais de 3 e meio milhões de espectadores, em seus primeiros dois meses e meio de lançamento. E é também o mais colorido e carnavalesco filme do diretor, tendo sido muito bem recepcionado pela imprensa popular brasileira. No entanto, ao apresentar uma comédia sobre a escravidão e reforçar o mito da afro-brasileira como ser predominantemente sexual, Xica também tem sido objeto de muitas críticas; seu lançamento norte-americano foi postergado até 1982, possivelmente por conta do distribuidor se encontrar incerto de sua recepção. O filme é dominado por uma interpretação irresistivelmente empoderada de Zezé Mota no papel-título; ela aparece em quase todos os planos. Um jovem aristocrata, João Fernandes, foi presenteado com um contrato exclusivo de uma mina de diamantes em Arraial do Tijuco. Xica, uma escrava doméstica, seduz João Fernandes, e ele a compra e liberta-a. Rapidamente ela domina a sociedade, provocando o ódio dos brancos, e um conde é enviado de Portugal,  para investigar o que anda ocorrendo de estranho. Xica se veste escandalosamente, algo que é completo com sua forte maquiagem branca, para divertir o conde racista, mas apesar de suas súplicas, João Fernandes é mandado de volta à Portugal. O palácio de Xica é destruído pelos vingativos brancos, e ela busca refúgio em um monastério, onde seu jovem amante, José, está se escondendo. O filme finda otimisticamente com José tentando convencê-la que eles podem continuar a combater o rei e seus seguidores. 

O filme seguinte de Diegues, Chuvas de Verão (1978), que Randall Johnson chama de "o primeiro, talvez o único, filme brasileiro a tratar a velhice com a dignidade e o respeito que ela merece." (1984, p. 82). Se, como Johnson também sugere, a "busca ou investigação" é um motivo maior na obra de Diegues e há  uma "preocupação com o espetáculo" de tal ordem que o seu tema central é "o próprio cinema brasileiro", então certamente seu filme seguinte, Bye Bye Brasil (1980), é seu filme-chave. Diegues já havia denunciado, em 1976, as "patrulhas ideológicas" da correção política, e com Bye Bye Brasil, buscou realizar uma obra ideal para a agência governamental Embrafilme, e foi um sucesso comercial doméstico e no exterior, divertindo com sua representação da viagem de um Brasil em mutação, e simultaneamente criticando a comercialização, e particularmente a americanização (talvez a globalização) do Brasil contemporâneo. Ainda que Diegues tenha ganho prêmios no Brasil por Joana Francesa e Xica da Silva, Bye Bye Brasil foi seu primeiro filme a ser incluído em uma competição em Cannes, feito que voltaria a repetir com seu longa seguinte, Quilombo (1984), uma refilmagem em grande orçamento, espetacular e em cores de Ganga Zumba, que obteve sucesso financeiro (mas não de crítica), que a obra anterior não havia conquistado. Após o golpe-dentro-do-golpe, quando a repressão do governo militar endureçeu, em 1969, Diegues foi brevemente para o exílio na Itália e na França, com sua esposa, a cantora Nara Leão, mas seria capaz de realizar dois longas antes que a repressão aliviasse, em 1974. Então, com a democracia retornando ao Brasil nos anos 80 e com a Embrafilme, e daí o apoio do estado ao cinema, colapsando, Diegues ainda foi capaz de realizar filmes. Um Trem Para as Estrelas  (1987), foi uma tentativa de romance adolescente da moda, que foi surpreendentemente incluído na seleção de Cannes, e Dias Melhores Verão (1989), foi uma paródia carnavalesca bastante interessante, em um estúdio de dublagem para cinema, continuando sua engenhosa crítica da cultura de mercado. 

Tipicamente, quando o cinema no Brasil pegou com a retomada, Diegues foi um dos primeiros a tirar vantagem, com Veja Esta Canção (1994), uma antologia de quatro histórias de amor, cada uma delas musicada por um grande compositor brasileiro - Jorge Ben, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso - premiando-o com o trofeu de direção no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (Havana, Cuba). A música sempre foi um dos aspectos mais fortes da obra de Diegues, e após dar a Sônia Braga um papel fumegante em Tieta do Agreste (1996),  que proporcionou a coadjuvante Marília Pera um punhado de prêmios na categoria, ele atualizou o vencedor do Oscar Orfeu Negro, para um ambiente contemporâneo de favela no Rio, completo com tráfico de drogas, telefones celulares e armas, filmados em Cinemascope. É sempre difícil efetuar a refilmagem de um "grande" filme, e nem tudo funciona em Orfeu (1999), ainda que algumas cenas de samba dançado sejam impressionantes e Diegues, uma vez mais, espertamente empregou Veloso para escrever a nova trilha, e o compositor ganhou o Grande Prêmio Cinema Brasil. Affonso Beato também ganhou este prêmio por fotografia, e o filme venceu o Prêmio India Catalina de Ouro de melhor filme no Festival Internacional de Cine de Cartagena (Colômbia).

Talvez porque sua obra, em anos mais recentes, tenha se tornado mais convencional, Carlos Diegues tem recebido uma série de honrarias no novo milênio. O Festival de Miami lhe deu o Golden Reel pela carreira, em 2000, o Festival de Cinema de Gramado lhe concedeu o Troféu Eduardo Abelin, em 2003 e, em 2006, O Maior Amor do Mundo venceu o Grand Prix des Amériques, mais importante premiação do Festival do Mundo de Montreal. Este filme também ganhou o Coral de Melhor Música para Buarque, em Havana. Ainda que ao menos sete dos filmes de Diegues tenham sido lançados nos Estados Unidos, incluindo seu filme anterior, Deus é Brasileiro (2003), é surpreendente que O Maior Amor do Mundo tenha recebido tão pouca divulgação internacional, e ainda mais surpreendente que nenhum DVD de seus filmes, à exceção de Bye Bye Brasil, parece existir correntemente disponível!

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictonary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 208-12. 

(*) N. do T: Evidentemente se trata de Zumbi, então após a segunda aparição do termo, mantivemo-lo corrigido. 

(**) N. do E: O título, na realidade, é Joanna Francesa.

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