Filme do Dia: Democracia em Vertigem (2019), Petra Costa

 


Democracia em Vertigem (Brasil, 2019). Direção: Petra Costa. Rot. Original: Petra Costa, Carol Pires, David Barker & Moara Passoni. Fotografia: João Atala & Ricardo Stuckert. Montagem: David Barker, Tina Baz, Jordana Berg, Joaquim Castro, Karen Harley & Felipe Lacerda.

A perspectiva de se associar a história mais ampla com uma subjetividade, inclusive a do próprio realizador (realizadora, no caso), é válida como outra qualquer, talvez até louvada dentro do contexto contemporâneo, embora sempre possa cair no risco de uma posição narcísica algo delicada. No caso o uso e abuso do recurso tem seus pontos positivos, mas igualmente sofríveis, sobretudo quando se faz uma associação de seu nascimento com o da redemocratização do país, em um processo metonímico de gosto duvidoso. Como se por osmose a pessoa pudesse se transformar em porta-voz ou dotada de uma aura de verdade que viesse das profundezas imemoriais de si e capturasse o mundo. Ainda mais alguém assumidamente “desqualificada”, como deixa entrever em alguns momentos – caso do início da cobertura do processo de impeachment, que a própria Petra afirma que achava ser a presidenta julgada por corrupção. Dentre os positivos, as imagens de bastidores do poder, também somente possíveis por relações pessoais da família de Petra, são as de longe mais interessantes, bem mais que seus comentários ao menos, e evocativas da relativa distância que se encontram de similar aproximação com os Kennedy (Crise: Por Trás de um Compromisso Presidencial), com a postura mais espontânea, ou mesmo desleixada daqueles. Já com relação às imagens de arquivo, talvez nenhuma seja tão emblemática – embora a da coreografia de Michel Temer no momento da posse e ao lado, mas algo à parte de Dilma, Lula e Dona Marisa seja a que a realizadora se detenha maior tempo – quanto a de Eduardo Cunha, afirmando que o uso político do impeachment seria sinônimo de golpe, nove meses antes dele próprio protocolar o pedido, como vingança pelos deputados petistas terem votado favoráveis ao próprio processo de cassação de seu mandato. Outro dos bons momentos, é o que Costa ouve dos congressistas o motivo da queda de Dilma – e cada um traz a sua opinião, da intransigência e incapacidade de diálogo (observada mais consistentemente, curiosamente, na fala de Roberto Requião, que de um aberto opositor ao governo se tornaria aliado), de uma metáfora culinária por Maluf (ela teria sido uma cozinheira que cozinhou a comida ao seu gosto e não de quem ia comer) ou das bravatas contra o sistema bancário, que iria pagar pela crise, na opinião de Jean Wyllys, assim como a negativa de concessão de entrevista por parte de Aécio, que tem um distinto vínculo familiar com a cineasta igualmente (seguido por um desnecessário risinho de Petra à câmera, bem de acordo com sua postura diante do que cobre, e de boa parte do próprio filme). As tomadas aéreas de drone, recorrentes na produção documental contemporânea (com destaque para o hagiográfico O Jardim das Aflições) também se encontram por cá. Em seu momento desilusão/mea culpa, já após o impeachment, que rende não muito mais que, nos bastidores, a saída de Dilma ao lado de José Henrique Cardozo, seu defensor no impeachment e até então ministro da justiça, no qual ela se compara a Joseph K. de Kafka, apresenta uma voz over de Petra falando sobre a decepção dela do PT ter entrando no mesmo jogo político com as construtoras que havia sempre norteado a política do país e uma mais lúcida autocrítica de Gilberto Carvalho, secretário geral da presidência do governo do partido, que destaca a principal falha dos governos do PT, não ter efetuado a reforma política que impedisse o financiamento privado de campanhas eleitorais. Entre as duas vozes, as observações da própria mãe da realizadora, que afirma que em um primeiro momento chegou a acreditar que a Operação Lava Jato estava de fato quebrando esse vínculo promíscuo entre grande capital e a política de forma desinteressada. Após o impeachment, o documentário acompanha a série de barbaridades cometidas contra a lei em nome de afastar a esquerda da possibilidade de uma nova conquista nas eleições, provocando inclusive perdas pessoais para Lula, como é o caso da morte de Dona Marisa, após a denúncia do pretenso tríplex que fora doado por uma empreiteira ao casal, que mesmo sem provas é apresentada em show midiático, com direito a transmissão ao vivo, e direção do procurador Deltan Dallagnol. Há um crescendo agônico ao final, que sela com os dizeres que Sérgio Moro foi escolhido como ministro da Justiça e Lula continua na prisão e faz com que a própria sequência dos acontecimentos, embalada por músicas de apelo emocional relativamente discreto, façam verter lágrimas dos que se sentiram identificados com a derrota, e com os retrocessos que ela fortemente sinaliza. Busca Vida Filmes para Netflix. 121 minutos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme do Dia: Der Traum des Bildhauers (1907), Johann Schwarzer

Filme do Dia: Quem é a Bruxa? (1949), Friz Freleng

A Thousand Days for Mokhtar