Filme do Dia: Acordes do Coração (1946), Jean Negulesco
Acordes do Coração (Humoresque, EUA, 1946). Direção: Jean
Negulesco. Rot. Adaptado: Clifford Odets & Zachary Gold, para o conto
homônimo de Fannie Hurst. Fotografia: Ernest Haller. Montagem: Rudi Fehr. Dir.
de arte: Hugh Reticker. Cenografia: Clarence Steensen. Com: John Garfield, Joan Crawford, Oscar
Levant, J.Carroll Naish, Tom D’Andrea, Peggy Knudsen, Ruth Nelson, Paul
Cavanagh, Robert Blake.
Paul Boray
(Garfield) é uma criança (Blake) que pede ao pai (D’Andrea) um violino, quando
por pressão da mãe, Florence (Knudsen), havia ido a uma loja para comprar algo
no dia de seu aniversário. O que o pai acreditava ser puro capricho se
transforma em obsessão de sua vida. Porém seu gênio intempestivo não o faz
avançar muito, e numa situação de depressão econômica que passa o país, sente a
pressão do pai para que traga dinheiro para a casa. Enamorado da jovem Gina
(Chandler), sua sorte muda de figura no momento em que o parceiro Sid Jeffers
(Levant) o leva a uma festa da grã-fina Helen Wright (Crawford), que se
entusiasma com o talento do jovem, numa apresentação acompanhada de Sid ao
piano. Ela passa a banca-lo e sua crescente influência sobre ele, transformada
em uma paixão retumbante, deixa sua mãe e Gina aflitas. Após todos os rumores e
Paul já morando sozinho, Helen decide se separar do marido e se casar com Paul.
Porém, na noite de uma apresentação sua, prefere não assisti-la e entrar no mar
sem mais retornar.
Esse filme, do
melhor momento da carreira de Negulesco (também dirigiu Belinda pouco após),
demonstra que as produções mais caras e em cores da década seguinte que
se tornarão marca registrada do realizador, demarcam sua mudança de chave para
talvez algo mais atrativo ao público mas, sem dúvida, menos dramaticamente
denso. Dois elementos um pouco atípicos chamam quase de imediato atenção para
essa película. Primeiro, a cena de transição, em que a passagem do tempo e
falta de avanços, em termos de carreira, de Paul, é observada por uma montagem
hiper-dinâmica ao estilo soviético. Depois, em se tratando de um filme com
Crawford, no momento também mais interessante de sua carreira (entre a segunda
metade dos anos 40 e a primeira da seguinte), chama a atenção de imediato não
se tratar de cara de um perfil que acompanhe o ponto de vista da personagem a
ser encarnado por ela, como nos outros (Almas em Suplício, Fogueira de Paixões, A
Dominadora, Precipícios d’Alma, Folhas Mortas), ainda que a dimensão de
tensão sexual em relação aos homens se encontre plenamente presente desde o
esperado momento em que a atriz é vista triunfante pela primeira vez em cena,
com meia hora de filme já passada. É notável o requinte com que Negulesco
trabalha motivos clichês – como o orgulho dos pais na primeira apresentação de
Paul ou a mãe defensiva diante de um pai de mentalidade estreita – e, pequenos
comentários visuais e sonoros sem necessidade que se abra a boca, como a
expressão hilária de descontentamento do empregado do bar que vai recolher ao
lixo o copo espatifado por Helen. E não apenas isso, propicia toda uma
possibilidade de forte leitura psicanalítica sem os excessos presentes nos
filmes góticos contemporâneos ou em Hitchcock. Assim se observa a tenaz entrega
de Paul a seu violino como uma extensão edipiana de seu conflito por
autoafirmação diante do pai. Ou ainda o delicioso momento em que o próprio
marido de Helen antecipa o desejo da esposa por Paul. E o atravessamento de
olhares, em que o olhar da mãe se interpõe entre os de Paul endereçados a Helen
numa apresentação. E, bem mais adiante,
a substituição de Helen e da paixão improdutiva na frisa do teatro pela
família, em que a mãe se torna uma figura muito mais destacada que sua apagada
futura mulher. E não faltam, é claro, licenças poéticas do roteiro, como a que
contrapõe o maior momento de tensão entre Paul e seu parceiro Sid, vividos
ambos com brilho, a uma tirada de coelho da cartola de apresenta-lo à alta
sociedade via os Wright, o que estranhamente nunca havia lhe passado pela
cabeça, apesar de acompanhar os esforços do amigo há tempos. Ou simplesmente
transmite todo o seu recado sem a necessidade de que nenhum personagem abra a
boca, como o primeiro plano que observa a desaprovação da mãe pelo que já
cheira como uma atração entre uma mulher casada e rica e seu filho solteiro e
pobre, simplesmente pelo olhar penetrante que lança a ele – o tema da mulher
rica que se sente fortemente atraída por um artista pobre já havia sido a
tensão maior do menos bem sucedido Argila
(1940), de Mauro. E, como naquele, ela faz questão de explicitar (aqui
inicialmente, lá perto do final) que o único interesse em questão não é pelo
homem, e sim por sua arte, algo que em ambos casos se sabe completamente o
oposto. E fica notória a maior complexidade da relação aqui, quando se tem o
“lado pobre” do conjunto demonstrar um nível de obstinação que coloca, na
primeira ocasião que pode, sua insatisfação com a relação de poder que
indelevelmente é criada ao ser tutelado pela “patrona das artes”, como ele
ironicamente a chama, em cena igualmente envolvendo cigarros e olhares de
sedução. E, por parte dela, ao não se render tão fácil aos encantos do moço –
por mais que no filme brasileiro ela é que tome a iniciativa da primeira
abordagem. E, em ambos casos, a mulher ideal, ingênua e devotada, da mesma
classe social de seu homem, também se encontra presente, sendo aqui ainda mais
escanteada pela trama. Traz ainda o bom senso de abdicar de uma trilha sonora
original, com tanto tempo já dispensado as apresentações e treinos de Paul, o
que não deixa de soar como uma opção involuntariamente moderna. Infelizmente o
que era apenas sugestão e olhares rascantes transformar-se-á posteriormente em
diálogo entre mãe e filho, pois é a mãe que aqui adota a postura
tradicionalmente paterna, já que somente ela que tem consciência o suficiente
do que ocorre. E o que era autonomia do desejo no caso de Helen se transformará
numa imagem espectral bastante significativa de seu próprio vazio e
inconsistência, evocativa de seu evidente sacrifício esperado e – por parte
do filme – da recusa de observar seu próprio desejo à sério. Muito sensatamente
o filme não força a apresentar uma cena de happy end tradicional, sequer
esboçando a união de Paul com Gina. Liebestod de Wagner (um dos temas
utilizados em Um Cão Andaluz) é
tocada por Paul no momento de desvario de Helen, embora se faça soar o que é
tocado há vários quilômetros de distância (e várias dezenas de metros do rádio
onde inicialmente Helen escutava o conserto). Destaque para o expressivo e
sensível Robert Blake como Paul quando criança. O conto de Hurst já havia sido
adaptado por Borzage em 1920. Warner Bros. 119 minutos.
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