Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#43: Cidade de Deus
CIDADE DE DEUS (Brasil, 2002). Cidade de Deus é um filme de gangster enérgico e habilidoso, que inesperadamente cativou o imaginário do público tanto do Brasil quanto internacionalmente. Realizado por aproximadamente 3 milhões de dólares, vendeu mais de 3.1 milhões de ingressos somente no Brasil (onde foi o mais popular filme doméstico do ano, e o sexto de todos os tempos), e um conjunto de outros 7 e meio milhões nos Estados Unidos, sendo lançado com sucesso ao redor do mundo, para um total de bilheterias que arrebanhou mais de 30 milhões. Se o público internacional o amou, os críticos internacionais o amaram ainda mais. Ganhou 56 prêmios ao redor do mundo, dentre eles o Festival Internacional de Cinema de Cartagena (Colômbia) e o Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (Cuba) (Havana, Cuba), e prêmios em festivais de cinema tão diversos quanto Guadalajara, Manilha, Montevidéu, Copenhague e Toronto, assim como New York Film Critics Award de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Mesmo não tendo ganhado nenhum Oscar, recebeu indicações para Diretor, Roteiro Adaptado, Fotografia e Montagem (ainda que não, curiosamente, para Melhor Filme em Língua Estrangeira, mesmo que fosse a indicação oficial nessa categoria).
Cidade de Deus foi baseado em um romance de 1997 de Paulo Lins, um nativo da favela nos arredores do Rio de Janeiro ironicamente nomeada Cidade de Deus, onde a história é ambientada. Como adaptado pelo roteirista Bráulio Montavani pelos co-diretores Fernando Meirelles e Kátia Lund, a narrativa apresenta uma versão ficcionalizada da série de guerras por drogas que teve lugar nas décadas de 1960 e 1970, focando na ascensão e queda do chefão psicopata do tráfico, assaltante e assassino Zé Pequeno (Douglas Silva quando criança, Leandro Firmino como adulto), o filme é narrado por Buscapé (Luis Otávio quando criança, Alexandre Rodrigues quando adulto), e embora seja o protagonista nominal, destinado a fornecer um são e honesto contrapeso a Zé Pequeno, o tempo passado com ele é inevitalmente menos vibrante e interessante que o apresentado pelo criminoso anti-herói. A história se inicia com um flashback para os anos 60, quando Buscapé e Zé Pequeno (então conhecido como Dadinho) eram crianças, detalhando os eventos em torno de um assalto a um motel por um trio de jovens delinquentes, dentre eles o irmão mais velho de Buscapé, Marreco. Dadinho, designado para vigiar o roubo, dispara sua arma para alertar os ladrões na fuga e então massacra os empregados e os clientes após saírem. Os rapazes mais velhos são condenados, sendo surpreendidos pela polícia, que mata um deles, enquanto o outro, Marreco, é assassinado por Dadinho. Esses eventos lançam o cenário que estrutura a história, que faz uma crônica de como a área foi engolfada pelas drogas e pela criminalidade e, agora adulto, e rebatizado como Zé Pequeno, assume os negócios de cocaína, eliminando seus rivais.
O que se segue, no trecho mais curioso do filme, quando a favela viceja entre a liderança de Zé Pequeno e seu amigo Bené (Phellipe Haagensen), "o traficante mais legal da cidade". Eles assumem o papel da polícia corrupta e ineficiente, proporcionando justiça sumária e violenta para qualquer um que viole sua regra de "nenhum roubo ou estupro" na favela. Já aberto a acusação de exaltar a violência e minimizar a extrema pobreza de seus moradores, o filme parece sugerir aqui é que tudo que é necessário para a paz social e prosperidade nas favelas é a presença de traficantes benevolentes. Há uma dinâmica racial singular presente no filme. A maior parte do elenco, como a maior parte dos moradores das favelas cariocas são afro-brasileiros, enquanto a polícia, como os hippies na praia e os empregados do jornal, são desproporcionalmente brancos. Com sutil riqueza, nunca mencionada, a fusão de raça e classe é visualmente aparente do início ao final. No entanto, a transformação de Bené para "rapaz legal" ocorre através de sua interação com personagens brancas (uma bela hippie, interpretada por Alice Braga, e seu ex-namorado viciado em cocaína). De pele já mais clara que seu parceiro Zé Pequeno e codificado como mais inteligente pelos óculos que porta, Bené tinge seu cabelo de vermelho e se veste com roupas importadas dos Estados Unidos (da mesma forma que os personagens brancos tendem a fazê-lo). Essa transformação racial é acompanhada por uma crescente benevolência e generosidade e um proporcional desprezo pela violência (noutras palavras, Bené se torna mais "civilizado").
E é também digno de nota que as duas mulheres que Buscapé - o outro personagem do filme que sonha em sair - se sente atraído são ambas brancas. Angélica, a hippie que perde para Bené, e Marina (Graziela Moretto), que é responsável por lhe arranjar um emprego de fotógrafo de jornal e com a qual tem sua primeira experiência sexual. Elas são também praticamente as únicas personagens femininas importantes. O papel feminino afro-brasileiro mais significativo é o da namorada de Mané Galinha (Seu Jorge), cujo estupro por Zé Pequeno, após a morte de Bené suscita a guerra entre gangues que é foco da última parte do filme. Isso envolve uma onda de crescente violência que deixa a maior parte dos personagens do filme mortos, mas também apresenta Buscapé se tornando fotógrafo de jornal e a ascensão de uma gangue de crianças jovens extremamente ferozes ("Os Caixa-Baixa"), que assassinam Zé Pequeno no ato climático de violência do filme e se apossam da favela agora completamente arruinada.
Ainda mais importante que a história, no entanto, é a forma pela qual é contada. A formação do co-diretor Meirelles é como publicitário, sendo ainda sócio da maior agência do país. Talvez o uso confiante do filme de uma série de técnicas de cinema se deva a isso, assim como deve muito a influência da MTV e de Quentin Tarantino. Enquanto câmeras na mão, atores não profissionais e a dependência de luz natural nas extensas cenas externas, todas reminiscentes do cinema verité, podem apontar para a formação documentária da outra co-diretora, Kátia Lund, os dinâmicos movimentos de câmera, telas divididas, imagens congeladas, travellings relâmpagos e narrativa não linear que salta para adiante e para atrás no tempo e algumas vezes revisitam os eventos, acrescentam informações da perspectiva de diferentes personagens, todos servindo para chamar a atenção para o estilo do filme e proporcionar ao público distância da violência extrema. Transformando essencialmente o retrato de uma favela numa experiência estética, lembrando constantemente os espectadores de que estão assistindo a um filme. Se essas técnicas não proporcionam evidências suficientes de intenções auto-reflexivas, o fato de Buscapé (o suplente de realizador, que se dirige diretamente ao público através de sua narração em voz over) escapar da pobreza e aprender a se expressar através do uso de uma câmera deve ser considerado significante.
Alguns críticos objetaram a aplicação de uma estética estilo-MTV para uma história ambientada numa favela, já que as emoções associadas com a violência feroz inevitavelmente se sobrepõem a qualquer crítica da pobreza, da corrupção policial, do racismo que a maioria consideraria como os maiores fatores contribuintes para a violência endêmica observada. Além do que, embora o filme afirme ostensivamente que a violência nunca proporcione nada duradouro e possua efeitos devastadores, essa postura é realizada de um modo ao menos hipócrita como revelado pela extrema violência do filme e os momentos de humor negro que o tornam ainda mais divertido de assistir. Nada disso, naturalmente, afasta-nos do poder visceral do filme. Um dos aspectos interessantes de sua produção é que muitos dos papéis foram interpretados por genuínos moradores da favela, com nenhuma experiência em interpretação, o que lhe proporciona uma autenticidade ainda maior na improvisação de alguns de seus diálogos. Dois desses atores infantis, Douglas Silva (Dadinho) e Darlan Cunha (Filé-com-Fritas), foram posteriormente utilizados por Meirelles e Lund em Cidade dos Homens, que se tornou um piloto de uma série de TV (no ar de 2002 a 2005) e que se tornaria filme em 2007. Diversos outros, notadamente Alexandre Rodrigues e Leandro Firmino, tem tido bem sucedidas carreiras na televisão brasileira, enquanto Meirelles é um ocupado produtor tanto para a TV como de longas para o cinema.
Lund, por sua vez, embora envolvida na popular série de TV Cidade dos Homens, tem devotado a maior parte de seu tempo desde 2002 ao Nós do Cinema, que oferece empregos e oportunidades aos estudantes das favelas. Alice Braga continuou sua carreira como uma atriz de destaque em filmes brasileiros e internacionais, incluindo um previsível papel decorativo ao lado de Will Smith em I Am a Legend [Eu Sou a Lenda] (2007). Provavelmente o mais bem sucedido ex-aluno de Cidade de Deus é Seu Jorge. Um músico em ascensão à época, tornou-se um astro internacional de gravadoras que, além de diversos álbuns de sucesso, foi também responsável por uma série de trilhas sonoras e realizou uma contribuição importante como ator e cantor para The Life Aquatic with Steve Zissou [A Vida Marinha com Steve Zissou] (EUA, 2004), de Wes Anderson. Ver também TROPA DE ELITE 2 - O INIMIGO AGORA É O OUTRO.
-David Hanley
Texto: Rist, Peter H. The Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 159-62.
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