Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#44: Marta Rodríguez

 

RODRÍGUEZ, MARTA. (Colômbia, 1933). Uma das melhores documentaristas sul-americanas, Marta Rodríguez foi também uma das primeiras mulheres sul-americanas a deixar sua marca na cena mundial, como diretora de cinema. Nascida em Santender logo após a morte de seu pai, sendo criada por sua mãe em uma pequena quinta. Crescida, tornou-se consciente que as famílias dos enormes ranchos vizinhos eram bastante ricas, e suas crianças extremamente privilegiadas, enquanto os campesinos que viviam logo ao lado, extremamente pobres. Em 1953, mudou-se para a Espanha com sua família - seu irmão mais velho foi estudar medicina lá - mas, após quatro anos, cansou-se do regime de Franco e mudou-se para Paris com sua irmã, lá trabalhando em um presídio feminino e auxiliando pobres trabalhadores  migrantes espanhois. Após retornar a Colômbia, em 1958, estudou sociologia na Universidade Nacional de Bogotá, indo então ensinar crianças pobres aos domingos em um centro comunitário no bairro de Tunjuelito. 

O interesse de Rodríguez se voltou à cultura indígena, fazendo então seu mestrado em antropologia. Em 1961, retornou a Paris para estudar no Musée de l'Homme onde, em 1962, inscreveu-se em um curso de cinema com Jean Rouch, figura de proa do cinema verité e talvez o mais inovador dos realizadores "antropológicos". Uma vez mais, ao retornar pra Colômbia da Europa, encontrou dificuldades em se engajar em qualquer tipo de atividade vinculada a realização cinematográfica.  Então, em 1967, encontraria o seu futuro marido, Jorge Silva, formando uma parceria cinematográfica que duraria até a morte dele. Inicialmente Silva foi a equipe completa de Rodríguez, mas formaram uma equipe criativa, por meio do qual colaboraram em todos os aspectos de seus filmes juntos. 

O primeiro projeto, Chircales, realizado em Tunjuelito, que levou cinco anos (1967-72) a ser completado, veio a se tornar o filme mais conhecido deles. É um modelo de ativismo social, no qual os temas do filme são diretamente envolvidos na realização  e continuada aprovação da obra, também formando um dos alvos do público do filme. Antes de completarem a versão final de Chircales, Rodríguez e Silva completaram um média-metragem, Planas, Testimonio de un Etnocidio (1970), sobre a perseguição e tortura, do povo índigena Guahibo, das planícies orientais colombianas. O terceiro filme deles, Campesinos (1974-76), explorava a violência contra e exploração à população rural colombiana. 

Para todos esses filmes, Rodríguez e Silva passaram bastante tempo pesquisando e se familiarizando com seus assuntos. La Voz de los Sobreviventes seguiu-os, em 1980, e o próximo filme da dupla a ser completado, Nuestra Voz de Tierra, Memoría y Futuro, foi iniciado em 1973 e não seria concluído senão em 1982. Ainda que Rodríguez e Silva tenham sempre recorrido aos retratados em seus documentários, para que reencenassem momentos de suas vidas, nesse filme contrataram, inclusive, alguns atores profissionais para representar de modo mais poético a história e a cultura do povo indígena andino (incluindo aspectos mitológicos), de sua própria perspectiva. Nuestra Voz de Tierra é um filme bastante bonito, ganhando prêmios no Festival Internacional de Cinema de Cartagena, o Huelva (Espanha) e Berlim, em 1982. Nacer de Novo (1986-87) é um retrato documental de dois septuagenários, que após perderem tudo em deslizamentos de terras e nas enchentes que se seguiram à erupção do vulcão Ruiz, em 1985, tentam continuar com suas vidas. 

Mesmo trabalhando em domínios mais poéticos e "mágicos", o casal retornou ao modo documentário político que "chama a ação" com Amor, Mujeres y Flores (1984-89), uma exposição das condições perigosas que as trabalhadoras colombianas vivenciam  nos negócios de cortes de flores. Às mulheres escolhidas que foram tematizadas foi exibido Chircales, para que compreendessem o tipo de filme que Rodríguez e Silva estavam realizando, e algumas mulheres abandonaram o projeto ao início, temendo perder seus empregos. As filmagens somente se iniciaram após seis meses de trabalho de campo e de pesquisa. O envolvimento de um antrópologo permitiu que algumas cultivadoras de flores fossem persuadidas a se deixarem filmar. Muitas das companhias agrícolas eram de proprietários estrangeiros - japoneses, alemães, suiços e americanos - e o principal alvo do documentário se tornou os fabricantes de pesticidas. Quando as flores vinham a ser cortadas pelas mulheres, já estavam cobertas de pesticidas. Ao final do filme uma greve de cortadoras é apresentada, sugerindo que muitas mulheres se tornaram politizadas durante a produção do filme. Uma das fontes de financiamento da película, a Interamerican Foundation norte-americana, abandonou o projeto, achando que a obra acabada era de propaganda, mas o Channel 4 britânico o apoiou grandemente, enquanto Rodríguez viajou pela Alemanha com Amor, Mujeres y Flores, para denunciar companhias químicas como a Bayer, que somente exportam os pesticidas para países do "terceiro mundo". O filme foi cortado de longa-metragem para 52 minutos, adaptando-se a duração da grade televisiva (incluindo comerciais). Tragicamente, Jorge Silva morreu  antes que a versão final estivesse completa. 

Ainda que Amor, Mujeres y Flores seja claramente sobre a opressão das mulheres, e ainda que se reconheça a situação precária de mulheres na América do Sul com sua "dupla jornada" (trabalhando dentro e fora de casa), e a violência contra elas, Marta Rodríguez não se considera uma feminista ela própria, e esse não é um conceito compreendido ou compartilhado pelos camponeses colombianos e mulheres indígenas, que se sentem completamente integradas (assim como suas crianças) em suas sociedades. Agora, por sua própria conta, ela abandona a película em 16 mm por várias tecnologias em vídeo e se voltou a trabalhar extensivamente com povos indígenas. Também, com o apoio da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), na França, montou uma série de oficinas para treinar povos nativos a realizar seus próprios documentários em vídeo. Em 1992, em colaboração com o realizador boliviano Ivan Sanjinés, dirigiu Memoria Viva, sobre o massacre de mais de 20 lideranças indígenas em Caloto, Cauca, após estes terem reclamado terras que pensavam pertencer a eles, em 1991. 

As duas obras seguintes de Rodríguez, sobre as plantações clandestinas de papoulas, na região de Cauca, foram co-dirigidas por seu filho, Lucas Silva: Amapola, la Flor Maldita (1994-98) e Los Hijos del Trueno (1994-98). Ela continua a focar nas problemáticas relações  entre os povos indígenas e as chamadas drugas com La Hoja Sagrada (2001-2), sobre o uso tradicional da folha de coca. Voltou então sua atenção para a população afro-colombiana da região de Urabá, que foram violentamente desalojados na década de 1990 e surpreendidos no meio de uma guerra entre forças do exército, paramilitares e guerrilheiras. Co-dirigiu três filmes digitais de uma trilogia Urabá com Fernando Restrepo: Nunca Más (2001), Una Casa Sola se Vence (2004), ambos os quais possuindo entrevistas com sobreviventes de um massacre, e Soraya, Amor No es Olvido (2006), documentário de 54 minutos retratando Soraya Palácios, mãe de seis, forçada a sair de sua casa em Chocó, após seu marido ser assassinado pelas forças paramilitares. Rodríguez tem sido honrada com retrospectivas de suas obras na França, Espanha e Alemanha; em 2008 recebeu um Prêmio Especial do Ministério da Cultura colombiano, pela dedicação de sua vida ao cinema. Continua ativamente engajada em questões envolvendo direitos humanos e trabalhando correntemente em uma série de documentários que refletem os 40 anos de luta dos povos indígenas colombianos contra o etnocídio, o primeiro dos quais se intitula Testigos de um Etnocidio, Memorias de Resistencia (2007-11). 

Ver também CINEMA ETNOGRÁFICO

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 491-4. 


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