Filme do Dia: O Estranho Caso do Conde (1959), Robert Hamer

 


O Estranho Caso do Conde (The Scapegoat, Reino Unido/EUA, 1959). Direção: Robert Hamer. Rot. Adaptado: Robert Hamer & Gore Vidal, a partir do romance de Daphne Du Maurier. Fotografia: Paul Beeson. Música: Bronislau Kaper. Montagem: Jack Harris. Dir. de arte: Eliot Scott & Alan Whity. Figurinos: Olga Lehman. Com: Alec Guiness, Bette Davis, Nicole Maurey, Irene Worth, Pamela Brown, Annabel Bartlett, Geoffrey Keen, Noel Howlett, Leslie French.

John Barratt (Guinness) é um entediado professor de francês numa universidade provinciana britânica em férias na França. Na mesma noite em que chega conhece uma figura idêntica a si própria, o aristocrata Jacques De Gué (Guinness), que o dopa e troca de roupa com ele. Tido como Gué, a família desse não acredita em sua versão da história e um médico (Howlett), atesta a situação como um episódio de esquizofrenia. Barratt assume então Gué e fica sabendo através da mãe daquele, a Condessa (Davis), de um contrato nupcial que se sua mulher, Françoise (Worth) morrer, ele herda toda a fortuna. Essa o flagra lendo o contrato e fica obcecada com a ideia que ele irá matá-la. Barratt passa igualmente a assumir a relação extra-conjugal do verdadeiro Gué com Béla (Maurey). Certo dia em que ele vai ao encontro dela, ao retornar encontra a polícia na residência e a notícia que Françoise se encontra morta, sua morte descoberta pela própria filha, Marie-Noël (Bartlett). Se a tese de suicídio ou acidente é inicialmente alentada, a irmã de Françoise, Blanche (Brown), acredita que o marido é o assassino.

O que os primeiros minutos dessa produção anglo-americana (em que a balança parece pender ao britânico) suscita é algo bem distante da mais célebre adaptação de uma obra de Du Maurier para o cinema, Rebecca (1940). Ao contrário do filme de Hitchcock se foge da ditadura dos cenários estilizados e necessariamente sombrios hollywoodianos e se naquele a dose de cinismo parece se restringir ao habitual dândi vivido por Sanders, aqui é o próprio protagonista que inicia atolado em seu próprio vazio e desesperança.  Muito dessa apropriação acerba do romance talvez se deva a presença de um Gore Vidal como roteirista e livre de boa parte dos empecilhos que encontraria em uma produção hollywoodiana convencional – com quem vivia às turras a época por conta dos arranjos realizados em suas adaptações de Tennessee Williams. Dito isso, as grandes expectativas se diluem no ar quase tão rapidamente quanto o álcool. Da esperança de pujança moderadamente modernista – e o filme bem poderia ter seguido os passos da criança que faz sua própria atualização do martírio de São Sebastião por cima do quadro com motivos clássicos -  sobram excessivos diálogos teatrais, do cinismo rapidamente se passa ao tédio por conta dos mesmos, das locações à versão britânica da cenografia “gótica” hollywoodiana, das suspeitas de maior liberalidade à certeza posterior que o filme igualmente sofreu pesadamente intervenções de produtores hollywoodianos e antes que se chegue a sua metade já se sente saudades frenéticas da adaptação hitchcockiana. O filme pode até conseguir algumas façanhas modestas ao início, como a do “diálogo” apenas testemunhado pelo espectador entre Barratt e seu valete, pois enquanto um fala, o outro replica apenas em pensamento (voz over) e certificar Guinness com certa aura de personificações múltiplas que antecipam a de seu conterrâneo Peter Sellers – pelas mãos do próprio Hamer havia vivido nada menos que 8 personagens no de longe mais bem resolvido As Oito Vítimas (1949). Porém, um terceiro momento nos fará nuançar tal sentença tão precoce.  Evidentemente que se alguém pensa que o interesse maior do filme é sublinhar quão mecânicos são os nossos papeis e relações sociais, ao ponto de alguém conseguir se fazer passar por outro, por conta apenas de sua absoluta similaridade física, sendo que o “renascimento” que se dá com essa troca de identidades aqui seria no sentido de maior inserção e alpinismo social instantâneo (tema algo obsessivo do cinema britânico do período, tendo em vista filmes como Almas em Leilão), o filme, de forma engenhosa, desconstrói tal hipótese, justamente a partir de uma das figuras que possui maior intimidade física com Barratt. Se, para efeito comparativo desfavorável, observa-se o quão distante aqui se encontra da complexa tessitura traçada por Hitchcock no contemporâneo Um Corpo Que Cai do tema do duplo, aqui se vai na contra-mão do Antonioni de Profissão: Repórter (1975), com alguém desgostoso da vida conseguindo retomar o gosto da mesma a partir do momento que passa a ter outra identidade.  A solução encontrada pelos produtores para apaziguar os ânimos de uma estrela no auge de sua carreira e de outra em momento de declínio foi apresentar somente o nome de Guiness antes do título do filme e jogar o de Davis para o final, mas também isoladamente e com destaque similar. A participação de Davis, aliás, é bastante pontual e sua entrevada condessa parece ser uma firme antecipação das matronas de forte personalidade e língua afiada que fará no restante de sua carreira, sobretudo após O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962), de Aldrich. Nicole Maurey, por sua vez, não precisa caprichar em seu inglês truncado, pois é de fato francesa, embora em quesitos mais importantes seja tão limitada quanto sua pronúncia. Talvez se deva a reconfiguração imposta pelos produtores e a diminuição de sua metragem a quase virtual incompreensão de vários elementos da trama. Du Maurier-Guinness para MGM. 106 minutos.

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