Filme do Dia: Marcha Cega (2018), Gabriel Di Giacomo




Marcha Cega (Brasil, 2018). Direção e Rot. Original: Gabriel Di Giacomo. Fotografia: Bruno Graziano. Música: Cauê Bravim. Montagem: Cauê Bravim.

Mesmo passando longe da criatividade em termos estéticos e perigosamente próximo de um documentário televisivo, com seu fundo neutro preto e entrevistas enquadradas quase sempre em ângulo similar, assim como imagens de arquivo de manifestantes e manifestações que vão desde o junho de 2013 das passagens até os protesto contra o impeachment de Dilma e pedindo Fora Temer, faz uso de um tema quase sempre escanteado pela mídia corporativa, o da criminalização das manifestações populares de rua no estado de São Paulo. Seus entrevistadores se dividem entre as não menos habituais autoridades e os manifestantes que sofreram covardes agressões físicas e psicológicas, algo que vem a ser reafirmado no tratamento que tiveram na esfera judicial, apenas reafirmando e/ou fazendo vista grossa aos abusos policiais grosseiros que levaram a cegueira parcial de envolvidos, como um fotógrafo de manifestações por uma bala de borracha, também vitimando outras pessoas. Tem-se a forte dimensão da ruptura democrática gradual quanto os mandatos esperados para desocupar as escolas secundárias ocupadas por jovens manifestantes, muitos deles ainda menores de idade, passaram a ser simplesmente invadidas pela polícia sem mais qualquer ordem judicial, a partir de 2016. Ao contrapor tal situação com o discurso ensaiado de Alckmin frente aos jornalistas, afirmando que tudo se deu na maior tranquilidade e ordem, salienta-se o quanto nossa sociedade se ergue sobre um pesado estrato autoritário, nunca dilapidado nem de longe, dos tempos do regime militar – um oficial reformado do exército, dono de algumas falas mais lúcidas contra sua própria corporação, já que conhecedor de dentro de seu podres, frisa que o ensino militar fugiu do escopo da LDB, não tendo nenhum controle da sociedade civil, uma licença legal à parte que faz com que policiais espanquem manifestantes mesmo diante de câmaras que gravam suas imagens ou que as regras de uso de armas não letais em todas as suas recomendações da apostila que orienta as ações dos militares não sejam cumpridas nem de longe, assim como os soldados ajam sem a devida identificação e pratiquem tortura contra diversos cidadãos, prática que segue princípios implantados pelo AI-5 de meio século atrás, mas que nunca deixaram de existir mesmo no período democrático, sobretudo voltado para as populações periféricas; torna-se didática, nesse sentido, a fala do fotógrafo que perdeu uma visão de reconhecer que a brutalidade sofrida por ele se diferencia daquela orientada para aqueles, pela distinção de lá não se usar bala de borracha, mas sim metálica. Pode-se ajuizar que as imagens captadas em precárias transmissões de receptores de TV vão um passo além do de produções como o contemporâneo O Processo, de Maria Augusta Ramos, por nem mesmo ter conseguido imagens das emissoras as quais frequentemente recorre, negativa essa que, inclusive, não surge dentre as várias que assomam nos letreiros que surgem antes dos créditos finais, talvez por conta dos custos ou da simples compreensão antecipada de sua recusa. Tais inserções surgem quase como para compor a ausência de acesso ao outro lado, prática por vezes também feita uso por Ramos, diga-se de passagem. Esse silêncio absoluto do outro lado – o único que sequer se manifesta com uma negativa é o juiz do STF Alexandre de Moraes, uma das cabeças da segurança pública paulistana justamente em um dos momentos mais críticos seguidos pelo documentário - parece um sinistro atestado para uma dilaceração sem mais qualquer inibição de ao menos uma ficção pro-forma de Estado de direito que assegure direitos humanos básicos para a grande mídia ver. Se a contundência de certos depoimentos pode ser evocativa do pioneiro Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles, aqui não se trata de tráfico, mas de reivindicações sociais. Que o aparato utilizado seja igualmente bélico e que os cidadãos e o tratamento dispensado a eles (não apenas pela polícia, mas igualmente pela grande mídia) seja o de opositores, traz a comprovação de uma “guerra particular” que provavelmente tenderá a se agravar com a eleição de um candidato à presidência de extrema-direita no exato momento em que essa produção chega às suas restritas sessões em salas específicas ao redor do Brasil.   Trata-se de uma narrativa fechada e redundante sobre o tema que aborda,  soando como um voo mais ousado  e reflexivo, para além do efeito imediato, das coberturas da imprensa alternativa, sendo as vozes contrárias (de jornalistas da grande imprensa, de políticos conservadores – o único que presta depoimento é engajado na causa, Eduardo Suplicy) esse contra-plano inexistente que torna o filme involuntariamente a expressão de uma segmentação ideológica tão cumplice quanto qualquer rede social ao estilo do Twitter. Salvatore Filmes. 88 minutos. 

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