Filme do Dia: Horas de Tormenta (1943), Herman Shumlin
Horas de Tormenta (Watch on the Rhine, EUA, 1943). Direção: Herman Shumlin. Rot. Adaptado: Dashiell Hammet & Lillian Hellman, sob a peça da última. Fotografia: Merrit B. Gerstad & Hal Mohr. Música: Max Steiner. Montagem: Rudi Fehr. Dir. de arte: Carl Jules Weyl. Cenografia: Julia Heron. Figurinos: Orry-Kelly. Com: Bette Davis, Paul Lukas, Geraldine Fitzgerald, Lucile Watson, Beulah Bondi, George Coulouris, Donald Woods, Henry Daniell, Eric Robert, Donald Buka.
Sara Muller (Davis) retorna à casa da mãe, Fanny (Watson), nos Estados Unidos, após quase vinte anos sem entrar em contato e viver na Europa com suas três crianças e o marido Kurt (Lukas), militante anti-fascista. Na casa também se encontra hospedado no momento o Conde Teck de Broncovis (Coulouris), diplomata romeno de estreitos laços com um grupo de nazistas da embaixada alemã, e sua mulher Marthe (Bondi), cada vez mais interessada pelo irmão de Sara, David (Woods). A situação de tensão chega ao limite quando Sara descobre que a pasta de Kurt foi aberta. Teck, que se encontra falido, procura então chantagear Kurt, e acaba sendo morto por esse. Kurt, após se despedir de toda a família, parte então para mais uma missão a qual não sabe se retornará.
Talvez o que exista de mais admirável nesse filme, inspirado numa das duas peças anti-fascistas escritas por Hellman, seja o modo extremamente competente com o qual consegue jogar com a tensão e o conflito iminente, sabendo-se de todos os interesses contrários envolvidos na mesma casa. A construção atmosférica dessa tensão, sem necessitar para tanto dos clichês mais habituais de então, consegue, inclusive, sobrepor-se às suas inúmeras debilidades, como a mal explicada e desnecessária subtrama quase capenga que apresenta a atração de Marthe por David e as constantes prédicas morais que jorram ora da boca de Lukas ou de Davis, alguns tons acima mesmo de alguns filmes hollywoodianos contemporâneos de mais explícita intenção de propaganda. Ou o fato dos personagens americanos serem vistos como ainda intocados por toda a maldade que assola a Europa, algo que melhor pode ser representado pela espontaneidade e espanto com que a impetuosa matriarca Fanny, vivida com brilhantismo por Watson, conhecida por papéis semelhantes, gradativamente toma conhecimento não só de todos os horrores que assolam o Velho Mundo, como da própria crise dentro dos muros de sua casa. Existe uma afinidade entre os “bons”, aí se explicando não só porque Marthe não pretende mais permanecer com o vil marido, como igualmente porque Teck é imediatamente tido como suspeito por parte do casal recém-chegado. O mais curioso de tudo é que até mesmo na sua relação afetiva com os filhos, o irreprensivelmente ético Kurt, que não fora capaz de usar do dinheiro da organização que o suporta nem para dar um tratamento melhor a família nos momentos de maior necessidade, é a dimensão ideológica e mesmo militar que se impõe à afetiva no trato com os filhos, como quando ele se despede do filho adolescente, lembrando que chegará o momento dele também se engajar na luta, doutrinamento que ele pretende que esse passe para o mais jovem, caso ele não mais retorne. E o mais interessante é toda a tensão ser construída a partir de elementos simples, sem necessidade de reviravoltas rocambolescas e apoiadas basicamente num único local - evidente herança de sua origem teatral, mas que acentua de forma positiva toda a construção dramática. Aos poucos a “inocência americana”, com suas velhas matronas em casarões coloniais e cercadas de criados negros, vêem-se diante de uma outra realidade, impensável para uma sociedade que deixa as portas sem trancas, como percebe imediatamente o eloqüente filho mais jovem de Sara. Ainda que a perda dessa inocência, se tal, dê-se de forma aparentemente muito menos traumática do que o foi para a garota Charlie de A Sombra de uma Dúvida (1945), a obra-prima de Hitchcock. Mesmo que os garotos se entusiasmem com um luxo que ainda desconheciam pelos pardieros em que tiveram que se acomodar em distintos países europeus, tampouco deixa de ser interessante o momento, ao início do filme, em que o garoto mais jovem, da janela do trem, observa os casebres da fronteira com o México e indaga a irmã se a casa da avó será algo semelhante. A resposta da mãe, que não conhece aquela região do país, mais parece um atestado de indiferença para com as desigualdades em seu próprio país diante de um mais cômodo sentimento de que todos os males se encontram no inimigo fascista. Dito isso, infelizmente o filme sucumbe próximo ao final quando justamente deixa que a tensão que o sustentava mais que tudo seja subjugada por seu proselitismo de encomenda, que acaba se chocando com a relativa naturalidade, encarnada sobretudo na figura da matriarca Fanny. Diante do evidente constrangimento com que a passagem da chave naturalista para o discurso empedernidamente empostado se faz, não resta senão como ela calar ou responder com algum monossilábico lugar-comum que faça jus aos discursos. Ainda que não creditado, Hal Mohr o co-dirigiu. Warner Bros. 114 minutos.
Comentários
Postar um comentário