Filme do Dia: Grilhões do Passado (1955), Orson Welles
Grilhões
do Passado (Mr. Arkadin, Espanha/EUA,
1955). Direção: Orson Welles. Rot. Original: Orson Welles, baseado em seu
próprio romance. Fotografia: Jean Bourgoin. Música: Paul Misraki. Montagem:
Renzo Lucidi, William Morton & Orson Welles. Com: Robert Arden, Patricia
Medina, Orson Welles, Paola Mori, Katina Paxinou, Michael Redgrave, Akim Tamiroff, Grégoire Aslan, Mischa Auer, Peter van Eyck, Suzanne Flon, Frédéric
O'Brady, Terence Longdon, Manuel Requena.
Guy Van Stratten (Arden) e sua garota Mily
(Medina) presenciam o assassinato de Bracco (Aslan). Quando este se encontra
próximo da morte ele afirma para Stratten que ganhará muito dinheiro com a
informação que lhe dará. Porém, com a chegada da polícia ao local, Mily é quem ouve
os dois nomes que pronuncia, lembrando-se apenas de um: Arkadin. Na pista do
misterioso Arkadin, milionário que vive dando festas em um castelo espanhol, e
vigia todos os passos da filha Raina (Mori), afastando-a dos aventureiros, Van
Stratten se aproxima de Raina, enquanto Mily de Arkadin. Arkadin fica perplexo
quando Stratten lhe afirma saber algo sobre seu passado. No entanto, o
escorraça do castelo. Posteriormente é convidado para ter uma conversa íntima
com Arkadin, que afirma de amnésia e a última coisa que se recorda é de se
encontrar com uma fortuna em uma valise, em 1927, em Zurique. Van Stratten
recebe então o propósito de ser pago para desvendar o passado de Arkadin.
Inicia através de uma revelação de Mily, que recorda o nome da mulher que Bracco
pronunciara quando de sua morte: Sophie. Para chegar até o paradeiro de Sophie,
no entanto, ele tem - juntamente com Mily - que passar pelas informações de uma
excêntrico amestrador de moscas (Auer), Thaddeus (Van Eyck), do antiquário
Trebisch (Redgrave), da Baronesa Nagel (Flon) - e descobre que, para surpresa
sua, Arkadin segue seus passos, e do viciado em heroína Oscar (O’Brady), que
finalmente lhe revela o paradeiro de Sophie. Enquanto isso, Mily tenta
descobrir algo mais sobre Arkadin em seu iate. Van Stratten vai ao encontro de
Sophie (Paxinou), que vive na Cidade do México e que lhe revela a verdadeira
história de Arkadin, que fazia parte de uma gangue de 9 homens que trabalhavam
para ela e que lhe roubou tudo o que possuía. Dos 9 homens, 6 se encontram
mortos e 2 presos e o terceiro é Oscar. Em uma festa de Arkadin, Van Stratten
descobre que Mily fora assassinada pelo mesmo, e quando procura alertar Sophie,
fica sabendo que ela e seu companheiro (Martinez), também foram mortos, assim
como Oscar. Resta apenas um dos 2 presos, que agora se encontra em liberdade, o
moribundo Jacob Zuok (Tamiroff), que Van Stratten encontra em um prédio
semiabandonado, que logo também recebe a visita de Arkadin e seus comparsas.
Van Stratten esconde Zuok no quarto de uma mulher, e apesar de Arkadin entrar
no quarto e encontrar Jacob, nada faz a esse, o que desperta a suspeita de que
não o reconhecera. Quando ambos mudam de lugar, Van Stratten percebe que, na
verdade, Arkadin já se encontrava por trás da morte de Bracco. Quando vai
comprar fígado de ganso para um ansioso Jacob comer na ceia de Natal, encontra
Arkadin no caminho. Esse lhe leva a um restaurante, onde Arkadin se recusa a
entrar com ele, já que Van Stratten foi visto em todos os
locais onde ocorreram os crimes, sendo seu perfeito bode expiatório. Quando
retorna ao hotel, Van Stratten encontra Jacob esfaqueado. A última esperança
que resta a Van Stratten é ir à Espanha e encontrar-se com Raina, antes do
próprio Arkadin, que se encontra apaixonada por ele, e lhe confiar toda a
verdadeira história. Arkadin pretende partir no mesmo vôo e oferece fortunas a
quem se dispor a ceder seu lugar para ele, mas é ridicularizado diante de todos
por Stratten, que consegue chegar primeiro e falar com Raina. Arkadin, de seu
jato particular, consegue falar com Raina na torre de controle que, orientada
por Van Stratten, afirma que “é tarde demais”. Arkadin suicida-se, jogando o
avião contra a terra, enquanto Van Stratten aceita l milhão de dólares para se
manter afastado de Reina, que parte com um secretário (Longdon) de Arkadin.
Filme que une o
cinismo habitual que caracteriza os personagens do gênero noir com as obsessões de Welles, em termos de estilo visual e
narrativo. No primeiro caso há um rompimento com qualquer expectativa sobre
quem seja o herói e quem seja o vilão, quando o suposto herói admite ser apenas
uma cópia mal sucedida do vilão, movendo-se ambiguamente entre duas mulheres,
ao sabor dos interesses. A própria Mily, se encontra longe do protótipo
feminino da época, já que muitas vezes parte para investigações por sua própria
conta e, pouco antes de ser assassinada, ainda tenta seduzir Arkadin. No
segundo caso a exuberância visual da utilização da câmera alta e baixa
(principalmente a última) e da profundidade de campo – sobretudo na cena em que
Arkadin leva Van Stratten ao quarto de Milly, e percebemos uma pasta que contém
um relatório sobre o último bem próximo da câmera, como o copo sobre o criado
mudo no quarto onde a mulher de Kane tenta o suicídio em Cidadão Kane e no momento em que Van Stratten percebe que Arkadin
também se encontra no mesmo hotel que ele na Cidade do México. Do mesmo modo o
caráter fake, que já pode ser
pressentido no início da narrativa, na voz over
do protagonista em tom francamente documental e a estrutura em quebra-cabeça
que evocam mais uma vez Kane, assim
como no fato de ambos serem uma investigação sobre a vida de ambos os
personagens-título – ainda que no primeiro caso, este já se encontre morto, e
no segundo tal investigação, aparentemente ainda seja mais perturbadora, já
que encomendada pelo próprio objeto de investigação. Porém, nessa narrativa de
muitas reviravoltas, o caráter fake acaba se sobrepondo ao drama
existencial, sendo que a frase-chave de
Arkadin – “sabe o que é ter vergonha de algo que não lembra?” – acaba perdendo
seu peso quando descobrimos que ele se encontra por trás de tudo. Porém, não ao
ponto da superação do conflito com uma filha que pode saber de seu passado – e
agora também de seu presente – e que lhe levará ao fim trágico. Aliás uma outra
semelhança com Kane, onde muito do
caráter trágico do personagem advém do desligamento dessa da mãe quando
criança, sendo aqui a relação invertida para filha e pai. Talvez mais
compreensível para a moral da história seja a fábula que Arkadin conta sobre a
travessia do rio do escorpião e do sapo, em que esse torna-se vítima de sua
própria natureza, que se volta contra a própria lógica (tal fábula seria
recontada pelos personagens de Traídos
pelo Desejo, de Neil Jordan). Em certo momento, como o de Mily e Arkadin no
iate, a dinâmica montagem parece antecipar, com seu corte brusco, as jump cuts
que se tornariam célebres nos filmes da Nouvelle
Vague alguns anos depois, podendo ser associada tanto ao desequilíbrio da
personagem provocado pelo álcool unido a instabilidade do iate. Também deve ser
destacado o rebuscado uso do flashback,
que se subdivide em um flashback
interno. Seu caráter barroco que, entre outros elementos, conta com a
associação do personagem-título a nomes e lugares diversos e uma identidade
imprecisa, seria extrapolada e retrabalhada com originalidade, por Sganzerla em
O Bandido da Luz Vermelha (1968).
Por outro lado, a apresentação de uma sequência ambientada em uma procissão
espanhola, entre outros costumes nativos, demonstra tanto a caricata falta de
sensibilidade de Mily e Van Stratten para com o diferente, como a apropriação
superficial do cineasta de um pano de fundo “exótico” para a cultura anglo-saxã.
O final, em tom profundamente cool e
anti-sentimental pode novamente ser
associado com a estética que a Nouvelle Vague trabalhará anos depois.
Filmado na Espanha, Itália, Alemanha e Inglaterra. Sevilla Films/Cervantes
Films/ Mercury Productions/ Filmorsa. 95 minutos.
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