Filme do Dia: Ondas do Destino (1996), Lars Von Trier
Ondas do Destino (Breaking the
Waves, Dinamarca/Holanda/Suécia/França, 1996) Direção: Lars von Trier.
Rot.Original: Lars von Trier. Fotografia: Robby Müller. Música: Joachim Holbek.
Montagem: Anders Refn. Com: Emily Watson, Stellan Skarsgård, Katrin Cartlidge,
Jean-Marc Barr, Adrian Rawlins, Jonathan Hackett, Sandra Voe, Udo Kier, Mikkel
Gaup, Roef Ragas, Phil McCall, Ray Jeffries, Owen Kavanagh.
Bess
MacNeil (Watson) resolve se casar com Jan (Skarsgaard). Como ela vive em uma
comunidade cristã grandemente fechada e tradicional, seu casamento com um
estrangeiro não é visto com bons olhos pela mesma. Dodo (Cartlidge), sua
cunhada e uma das poucas a apoiá-la sem restrições, faz um discurso apaixonado
de como ela, outra estrangeira, fora acolhida de braços abertos por Bess e como
uma cuidara da outra quando da morte do irmão de Bess. Os outros elementos a se
destacarem da comunidade, por seus hábitos liberais, por também serem estrangeiros
e não professarem a religião local são os colegas de trabalho de Jan, Terry
(Barr) e Pim (Ragas). Após perder a virgindade no banheiro do salão onde ocorre
a própria cerimônia de casamento e viver um idílio amoroso de grande poder
sexual com Jan, Bess, de transtornos psíquicos e personalidade frágil, não
aceita de forma alguma que seu marido parta para trabalhar na plataforma de
petróleo, como ocorre com todos os homens da região. Ela entra em crise e
avança para o helicóptero quando este parte. Confortada por Dodo, Bess vive
visitando a igreja, onde possui encontros “secretos” com Deus e faz a voz tanto
de si como de Deus. Sempre pede que Jan retorne o quanto antes, porém quando
este sofre um grave acidente, Bess passa a sentir-se extremamente culpada por
ter pedido seu retorno. Após operação, sem risco de vida mas possivelmente
condenado a passar o resto de seus dias tetraplégico, Jan se encontra
deprimido. Ao receber a visita dos colegas de trabalho, que lhe trazem cerveja,
todos procuram disfarçar o constrangimento - haviam colocado a cerveja próximo
dele, sem saber que ele também não podia movimentar os braços. Jan começa a
afirmar para Bess que ela deve continuar sua vida e que a única forma de lhe
dar vida é continuar a ter uma vida sexual ativa com outros homens e vir lhe
contar sobre tudo o que acontecera. Inicialmente Bess tenta com o médico que
cuida de Jan, Dr.Richardson (Rawlins), também psicoterapeuta que lhe procura
auxiliar, visitando-o inesperadamente para dançar em sua casa e depois indo
para seu quarto e lá se despindo. Ele afirma que ela deve voltar para casa.
Quando conta como se houvesse ocorrido relações entre eles para Jan, ele imediatamente
sabe que ela mente. Jan, quando da retirada de sua respiração artificial, reage mal e num delírio terminal afirma para ela que deve se sentar junto com
ele no final do ônibus. Ao sair do hospital pega um ônibus e senta-se no final,
onde masturba um homem (Jeffries) que não conhece, descendo logo após completamente
enojada. Certo dia, no entanto, quando volta ao hospital, Jan reclama para ela
que sua forma de se vestir é muito pudica. Que ela deve se tornar mais
atraente. Bess passa na casa de uma amiga e pede roupas típicas de prostituta
para usar e sai para um bar frequentado apenas por homens, levando um deles
(Kavanagh) para manter relações em um local deserto. Preocupada com a situação,
tanto Dodo quanto o Dr. Richardson lhe afirmam que ela se encontra em uma
situação de delírio das mais perigosas. O último lhe diz que se encontra
apaixonado por ela e que Jan é maníaco sexual, em visita que faz a sua casa, e
ela imediatamente pede que ele se retire. Sua mãe (Voe), que não toca no
assunto diretamente, afirma que ela terá que ter mais cuidado se não quiser ser
banida pela comunidade, já que até pessoas bem mais fortes que ela, quando
foram banidas, tornaram-se totalmente vulneráveis. Bess, no entanto, só escuta
os pedidos de Jan e continua a fazer sexo com estranhos. Vai até um barco, onde
até mesmo as prostitutas se recusam a ir e foge por pouco de um marinheiro sádico (Kier). Entra na igreja, no momento em
que ocorre a cerimônia, e afirma que eles amam as palavras, não as pessoas,
indo contra o imperativo de que as mulheres não podem falar e sendo
oficialmente banida. Quando perambula com sua motoneta pelas ruas da cidade, é
escorraçada e chamada de puta por um grupo de meninos das cercanias,
desmaiando. O padre (Hackett), mesmo penalizado, não possui coragem de
auxiliá-la, certamente temendo a reação da sociedade. Dodo lhe encontra e conta
que Jan se encontra próximo da morte. O Dr. Richardson conseguiu que Jan anteriormente autorizasse Bess ser internada em Glasgow, afastando-a do
local. Porém quando Bess se dirige para lá, consegue fugir do carro e retornar para
o barco do marinheiro sádico, onde sofre violências profundas. Agonizante, pede
para ver pela última vez Jan e se entristece ao saber que seu sacrifício não
fora capaz de devolver a vida a ele. Morre pouco depois, deixando inconsoláveis
Dodo, sua mãe e o Dr. Richardson. Quando vai depor sobre o caso, emocionado, o Dr. Richardson disse que se fosse refazer o laudo pericial sobre sua cliente,
acabaria afirmando que antes de neurótica ou psicótica ela era sobretudo uma
pessoa boa. O fato é que Jan não só melhorou, como voltou a andar com auxílio
de muletas. Quando sabe que a Bess será destinado o mesmo fim que presenciara
em um enterro local, ou seja ser destinada ao inferno como pecadora, Jan se
revolta e consegue substituir o corpo dela por sacos de areia, levando o
cadáver para ser jogado no mar, com a ajuda dos amigos Terry e Pim, de
madrugada. Quando o dia amanhece, Terry chama Jan e a todos do navio para ouvirem
um fato extraordinário: um grande badalar de sinos (as igrejas da comunidade
não possuem sinos).
Profundamente cristão, ainda que radicalmente
anti-clerical, o filme de Lars Von Trier leva a algumas dentre as reflexões
mais complexas já efetivadas pelo cinema nos últimos tempos sobre o fascinante
paradoxo que constitui o saber tradicional: ao mesmo tempo responsável por toda
a neurose e culpa que faz com que Bess se autodestrua e fomentador de uma fé e
paixão obsessivamente devotas, que provocam o milagre final - Jan volta a
andar. Repressão sexual e religiosidade se confundem no espírito atormentado de
Bess (uma parente próxima de Magnani em O
Amor de Rossellini - com quem aliás o filme possui vários pontos em comum,
assim como O Sacrifício de Tarkovski
e A Palavra, de Dreyer). Sua atitude
provoca mal-estar e desagregação à nível individual, mas também põe em xeque
uma série de tabus da coletividade. Assim Bess vai contra o sofrimento
silencioso compartilhado por todas as mulheres do vilarejo, resignadas de não
viverem com seus homens e acha tolice que as mulheres não possam falar na
igreja, da mesma forma que acolhe de espírito aberto os mal-vistos estrangeiros
com todas suas diferenças. Porém o mais fascinante do filme reside mesmo no
embate que representa seu cerne, ou seja, nas duas faces da mesma moeda que
representa a tradição, que há um só tempo enterra seus mortos condenando-os ao
inferno como pecadores que são, e por outro, acabam por gerar figuras como
Bess, que vai além da razão instrumental-cartesiana, como a razão médica, onde
esta já não aponta mais saída (razão que falha, inclusive, por prejulgar
comportamentos como os de Bess como simplesmente neuróticos, uniformizando
assim sua dimensão complexa). Nesse ponto, a figura de Bess se assemelha a de
Kaspar Hauser, personagem igualmente carismático e de forte influência
romântica, no seu irracionalismo humanista.
Destaque para a brilhante direção de atores, em
particular Watson, Cartlidge e Skarsgaard e para a sempre nervosa câmera,
inquieta do início ao final, como que sismografando o estado emocional da
protagonista. Talvez grande parte de seu efeito dramático desconcertante seja
proveniente da pouco comum utilização de recursos como a câmera na mão e a
utilização do Super 35mm. A montagem, embora elíptica dentro de cada seqüência
de planos, nem por isso se aproxima de ser abrupta, parecendo antes ser uma
domesticação daquela para uma forma mais próxima da “montagem invisível”
tradicional. Sua narrativa é estruturada em capítulos, divididos pela inserção
de verdadeiros “quadros vivos” de paisagens em longos planos, construídos com
auxílio da exuberante fotografia de Robby Müller - habitual colaborador de
Wenders na década de 70 - e de pérolas do repertório pop da mesma década ou que nela ainda ressoavam como Yellow Brick Road e Whiter Shade of Pale.
October Films. 158 minutos.
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