Filme do Dia: Esse Mundo é Meu (1964), Sérgio Ricardo
Esse
Mundo é Meu (Brasil, 1964). Direção: Sério Ricardo. Rot. Adaptado: Sérgio
Ricardo, a partir da peça de Chico de Assis. Fotografia: Dib Lutfi. Música:
Lindolfo Gaya & Sérgio Ricardo. Montagem: Ruy Guerra. Dir. de arte: José
Scandal. Com: Sérgio Ricardo, Luiza Aparecida,, Antônio Pitanga, Léa Bulcão,
José Sebastião, Amaro Scandal, Ziraldo.
Pedro (Ricardo) une-se a namorada Luiza
(Aparecida) e quando essa se encontra grávida, decide ela própria pelo aborto,
enquanto Pedro teme pela morte dela como a de tantas que lhe antecederam nas
mãos da mesma mulher. Toninho (Pitanga), engraxate e malandro, sonha com uma
bicicleta com a qual poderá passear com a garota de seus sonhos, Zuleika
(Bulcão).
É a convivência entre uma nova bossa
estilística, presente desde os devaneios da câmera de Lutfi em seu belo prólogo
musicado e o paternalismo retrospectivamente algo constrangedor em relação aos
seus personagens despossuídos que o filme sinaliza desde o seu início. Em
termos de criatividade, o músico-cineasta Sérgio Ricardo traslada, por exemplo,
diálogos da peça para um som não sincronizado com a imagem e passamos a observar
um vacilante protagonista a pedir esmola ou tentar abordar um futuro cliente em
meio a multidão com os diálogos travados com sua namorada, que se tornará uma
marca registrada do filme, criando estranhas reverberações como a continuidade
do dialogo dos namorados sobre imagens de um grupo de homens em trabalho pesado
numa fundição, ou seja, o trabalho de
Pedro. Seu tom improvisado e
lírico faz com que as deambulações dos personagens pelas ruas da cidade, mais
que da favela (núcleo de mais fácil “controle visual”) seja inevitavelmente
acompanhado pelo olhar curioso dos transeuntes, como em Acossado, ou mesmo com pessoas acenando diretamente para a câmera
como um dos passageiros do bonde em que Pitanga se desloca. E o filme concede
tempo e espaço sem pressa para essas deambulações, inclusive como registros do
pensamento da personagem vivida por Pitanga, que observa a si próprio e a
namorada a se divertirem em momento de puro deleite e prazer de estarem juntos,
desfrutando igualmente da bicicleta que é o sonho de consumo dele sob a linha
do bonde. Enquanto do casal negro praticamente só observamos os diálogos em
over e raramente com a presença de ambos, do casal branco se observa as
situações em sincronia com os diálogos. Se as soluções visuais são quase sempre
inspiradas, não se pode dizer o mesmo das falas, principalmente as do
personagem vivido pelo próprio realizador. O recorte típico de gênero da época
também se faz presente. O Pedro de Sérgio Ricardo possui uma angústia
existencial em que equipara a vida ao algodão doce que consomem em um parque de
diversões, enquanto Luzia acha tudo que ele fala de um nonsense completo, que ele sequer se dá ao esforço de minimamente tornar compreensível. E a personagem de Toninho, quanto mais gradativamente avança, parece
sobrar como quase somente ilustração do pessimismo sombrio de Pedro, ainda que
o final surpreenda com uma reversão. A
virtuosidade do trabalho de câmera de Lutfi é de tirar o fôlego como, dentre
inúmeros exemplos, os planos que acompanham o deslumbramento do casal em uma
roda gigante. Ou ainda seu apreço pela câmera circulante, aqui presente em
vários momentos, inclusive o de enlaçamento entre um casal tal como em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Noutro
Pitanga sorri altivo para ela, após o roubo da bicicleta. Por conta provavelmente de
ser músico, Sérgio Ricardo tem um cuidado meticuloso com o áudio não apenas nas
já referidas incursões da voz over sobre imagens distintas mas também na
utilização de seus belos temas musicais, como o momento de celebração à
Iemanjá. É claro que nesse esforço de representação do popular não faltam
algumas soluções francamente risíveis como a da briga de capoeira entre Pitanga
e o homem que é rude no pretenso encontro sexual que haverá entre esse e
Zuleika. Se não incorporasse tanto da
carga teatral na interpretação de Ricardo em momentos como o que ele desabafa e bebe com uma negra, a
cena, contagiada pelo espalhafato dessa soaria como antecipação do saudável
escracho do Cinema Marginal. Uma
apresentação teatral, observada em alguns momentos, serve como uma função não
tão explícita (como a do cego que canta canções do próprio Ricardo no
contemporâneo Deus e o Diabo na Terra do
Sol) de coro. O triunfo de seu
arrojo visual sobre sua posição engajada e não muito distante da ideologia dos
centros populares de cultura pode ser bem medida nas duas sequencias finais. Na
penúltima se observa um Pedro perguntar se está só para os colegas de trabalho,
que respondem com seu silêncio, mas hoje mais serve como percepção de que ele de
fato se encontra só não apenas enquanto personagem, mas também como ator, já
que todos os outros trabalham em chave dramática completamente distinta.
Enquanto na última se tem o comovente delírio do casal Toninho e Zuleika,
compartilhado por uma câmera não menos delirante que saracoteia de forma
carnavalesca ao redor deles. É desnecessário dizer qual de longe continua a
satisfazer aos olhos. Embora o esquematismo ideológico lhe furte o brilho mais
de uma vez, não se pode dizer que o filme não elabore as coisas também de forma
menos redutora, como é o caso do final, em que o trabalhador mais consciente
representado por Pedro vivencia a depressão e ausência da mulher amada,
enquanto o inconsequente Toninho explode de alegria ao lado de Zuleika e de sua
bicicleta. Um alerta que a via do trabalho não será o caminho para suas
personagens parece pouco provável, já que aí também se estaria jogando com a
água o bebê, ou seja, a consciência de classe.
Ziraldo surge numa ponta não muito feliz como padre que tem sua
bicicleta roubada por Pitanga.
Copacabana Filmes para Prod. Cinematográficas Herbert Richers. 78 minutos.
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