Filme do Dia: Mãos Vazias (1971), Luiz Carlos Lacerda
Mãos Vazias (Brasil, 1971).
Direção: Luiz Carlos Lacerda. Rot. Adaptado: Luiz Carlos Lacerda, a partir do
romance de Lúcio Cardoso. Fotografia: Rogério Noel. Música: Jaceguay Lins.
Montagem: Raimundo Higino. Dir. de arte e Figurinos: Mara Chaves. Com: Leila Diniz,
José Klébler, Ana Maria Magalhães, Arduíno Colasanti, Irene Stefânia, Hélio
Fernando, Manfredo Colasanti, Gabriel Archanjo, Nildo Parente.
Felipe (Kléber) leva
a esposa Ida (Diniz), ambos prósperos burgueses e vivendo numa posição social
de destaque em Curvelo, a trocar por Vila Velha, onde Felipe herdou propriedade
e pretende reviver um engenho de açúcar. E onde encontram um casal Ana
(Magalhães) e Mário (Arduíno Colasanti) completamente descrente na vida e no
amor. Sobre Mário pesa os comentários da população de seu envolvimento
com outro homem. A própria Ida se revolta contra os costumes e temores sociais
do marido após a morte do filho, Luisinho entregando-se a Mário, e igualmente
disposta a abandonar Felipe e romper com a vida pregressa, nem que para isso
tenha que verter sangue com suas próprias mãos.
Filmado à distância,
com raramente os enquadramentos se aproximando demasiado de suas personagens,
parecendo traduzir a mesma distância com que tudo é narrado. Engessado pela
opção um tanto literária de voz over se sobrepondo ao que de fato é vivido
dramaticamente através de diálogos, primando muitas vezes por um preciosismo na
imagem, como na fotografia que possui momentos em que salta certo esplendor
contido, como no contraste brilhante da iluminação do dia vazada pelas janelas da
casa. Os excessos do patriarcado, a voz over sempre nos lembrando se tratar de
uma narrativa, assim como a opressiva modorrência em um universo repleto de
luz, menos no casarão burguês, mas nem por isso tornado gótico, sombrio ou
escuro como em outras adaptações de Cardoso, poderiam sugerir um paralelo com o contemporâneo São Bernardo, de Leon Hirzsman,
mas se com facilidade se adere ao sentimento de frustração solitária e
cerceamento da sensibilidade da protagonista daquele, longe se pode dizer o
mesmo aqui. Há pelo menos duas evidentes menções ao autoritarismo militar, que
vivenciava seu auge no período em que foi produzido mas, sobretudo, mais
direcionados às minorias, como as mulheres, a quem se pretende ser interditado
o desejo, resultando no suicídio de uma garota flagrada pelo pai fazendo amor
na praia, ou os homossexuais, a quem Lacerda parece dirigir uma discreta, mas
nem por isso menos ousada e “política”, piscadela, no sentido da afirmativa
cena de nudez e cama e, posteriormente, reserva voz própria. De um modo geral,
as soluções visuais (e, algumas vezes, sonoras, como discretos efeitos
musicais) se saem bem melhor que os monólogos/diálogos, literariamente talvez
interessantes, mas demasiado óbvios ou didaticamente psicanalítico-existenciais
ao serem aplicados em um filme. Existem apropriações algo toscas de referências
cinematográficas, como a morte de uma personagem sendo alternada com a de reses
sendo sangradas (A Greve). Diniz parece particularmente deslocada
em um papel aparentemente em tudo distinto de sua persona cinematográfica e,
ironicamente, morreria pouco depois em um desastre de avião quando voltava de
um festival na Austrália que a premiara justamente por esse papel.
Aparentemente, pois não falta uma cena em que fará amor com o médico ao lado do
cadáver do filho recém-morto e com o marido a dormir no aposento contíguo, a
partir daí vivenciando uma reviravolta em tudo oposta ao que fora. Sexo e morte
sempre vizinhos, como parece afirmar toda a obra de Cardoso, mas nunca tão
explicitamente como nessa cena. Ao
contrário da fotografia, o som, algo nada incomum na produção nacional de
então, é péssimo e muitos diálogos e monólogos se tornam virtualmente
incompreensíveis. Apropriando-se de boa parte da equipe e elenco, além de local
de produção (Paraty se fazendo passar por Vila Velha) onde se encontrava
“exilado” seu mentor cinematográfico, Nélson Pereira dos Santos (sobre quem
faria, na mesma época, o curta Nélson
Filma e também faz referência em um diálogo ao subtítulo e a uma
situação de Fome de Amor (Você Nunca Tomou Banho de Sol Inteiramente Nua?). O descaso com o
mimetismo associado a precariedade de produção em relação a provável impossibilidade
de várias tomadas de uma mesma cena justificam a respiração saliente e até o
movimento com a cabeça de um cadáver sobre a cama. A dimensão potencialmente
feminista da obra de Cardoso, ou ao menos tal como adaptada com grande
liberdade por Lacerda também se encontra em outras mulheres criminosas do período como em Afinal, Uma Mulher de Negócios de Fassbinder, sendo muitas vezes
nenhum pouco progressista na contemporânea New Hollywood (Medium Cool, Klute,
dentre vários outros). Em termos
comparativos, pode-se dizer que se situa para um filme como Dora, Doralina (1982), de Perry Salles
tal como as obras-chaves do cinema novo se encontravam para O Pagador de Promessas. Magnus
Filmes/Ponto Filmes para Ipanema Filmes. 80 minutos.
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