Filme do Dia: A Cor Púrpura (2023), Blitz Bazawule

 


A Cor Púrpura (The Color Purple, EUA, 2023). Direção Blitz Bazawule. Rot. Adaptado Marcus Gardler, a partir do musical homônimo de Marsha Norman e do romance homônimo de Alice Walker. Fotografia Dan Laustsen. Música Kris Bowers. Montagem Jon Poll. Dir. de arte Paul D. Austerberry. Cenografia Larry Dias. Figurinos Francine Jamison-Tanchuck. Maquiagem e Cabelos Ngozi Olandu Young & Andrea Bowman. Com Fantasia Barrino, Taraji P. Henson, Danielle Brooks, Colman Domingo, Corey Hawkins, Phylicia Pearl Mpasi, Halle Bailey, Ciara, H.E.R., David Alan Grier, Deon Cole, Jon Baptiste, Louis Gossett Jr., Deon Cole.

1909, Geórgia. A adolescente Celie Harris (Mpasi) é negociada pelo pai, Alfonso (Cole), para o abusivo Mister (Domingo), separando-se de sua querida irmã Nettie (Bailey), depois de já ter retirado os filhos de Celie do convívio com a mãe. Quando Nettie busca refúgio na casa de Celie, a fugir das tentativas de ser abusada pelo próprio pai, é escorraçada brutalmente por Mister, quando esta não permite que este cometa abuso sexual contra ela. 1917. Celie observa a postura insubmissa da esposa de seu enteado, Harpo (Hawkins), Sofia (Brooks), que leva a separação do casal e a união posterior de Harpo com Mary “Squeak” Agnes (H.E.R.), de perfil mais tradicionalmente submisso. A cantora e ex-amante de Mister, Shug Avery (Henson) abala a provinciana comunidade local, com seu canto, sensualidade e poder. Avery revela a Celie uma infinidade de cartas escritas por Nettie, que vive com os filhos de Celie, na África. Quando volta à Georgia Sofia é convidada a ser empregada da mulher do prefeito, envolvendo-se em uma briga física que a leva à prisão, sendo apoiada unicamente por Celie. Após a soltura de Sofia, esta se encontra em estado de depressão profunda, que somente é abalado quando Celie resolve romper com Mister e partir com Shug Avery para Memphis. 1945. Com a morte de Afonso, descobre-se não ter sido ele o pai biológico das irmãs, ambas herdando a casa e o comércio deste, Celie  se afirmando como desenhista de roupas e lojista. Um alcóolatra decadente, com as plantações não vingando desde a partida de Celie, que proferira então uma maldição contra ele, Mister decide reparar os seus erros, negociando o retorno de Nettie da África junto ao consulado e aparecendo na loja de Celie para comprar uma calça extravagante. 1947. Celie comemora com toda a família, e recebe a surpresa inesperada da chegada de Nettie e seus dois filhos, após o longo esforço de Mister, que observa emocionado a reunião das duas irmãs, seguindo-se uma celebração coletiva de todos.

O livro de Walker parece não ter encontrado ainda uma modulação certeira em sua adaptações ao cinema – em 1985 houve uma versão de Spielberg, da qual se poderia dizer ser spielbergeana. Nesta versão, o principal obstáculo é a mal urdida interrelação entre musical e drama, o que menos potencializa o último que  o arrefece. Acompanhamos uma saga familiar dos idos de 10 até o pós-Segunda Guerra sobre um âmbito estritamente de uma família negra. Com todos os percalços e conflitos mais fácil de serem ressaltados quando se encontra fora de se visualizar o universo branco de forma mais nítida – a exceção do episódio envolvendo a mulher do prefeito e Sofia. Porém tudo ganha uma escala épica a arrefecer qualquer envolvimento efetivo com os dramas apresentados. E nesta escala há uma valoração a pesar sobre cada cabeça. Que, no máximo, pode se inverter rumo a emancipação feminina, como quando todas as mulheres da família decidem abraçar sua autonomia. E, no caso dos opressores, quando reconhecem, como Mister, o quão perversos foram, realizando uma reparação possível de seus atos, na linha oposta da efetuada pelos brancos, com a mulher do prefeito, no final, conseguindo dobrar  Sofia ao ponto de conseguir tê-la como empregada. Alguns pudores típicos de uma grande produção ou uma produção extremamente visada de abordar temas como a homossexualidade (a exemplo de Perdidos na Noite, em relação a sua fonte literária) são de fato referidos, ainda que quase acidentalmente – caso do envolvimento afetivo entre Celie e Sofia, que chegam às vias de fato. Em que medida terá este discreto lugar no livro, quase uma nota de rodapé, o que não seria de se espantar, caso assim o fosse, dado o período ocorrido, é algo a ver, sobretudo para os conhecedores da obra literária. Seu final é uma catarse também imagética, trazendo o não menos idealizado vínculo com a ascendência africana, manchada pelo colonialismo, no caso em questão britânico. É a reunião de todos, sobre um manto/auréola celestial, em torna da figura mítica de uma árvore (um baobá?). Se pusermos na conta do essencialismo um homem branco e um homem negro  dirigiram as versões audiovisuais da obra de Walker- e no caso desta, também co-produzida pelo mesmo Spielberg. Quem sabe na próxima, uma mulher negra consiga uma proximidade maior com o páthos do livro. Destaque para a presença do veterano Louis Gossett Jr., a viver o irascível pai de Mister, quase como se pondo sobre ele a culpa do filho ter seguido tão cegamente a lógica opressora do patriarcado. Evidentemente presente no momento de súbita rebelião feminina sobre a situação de opressão interna, vinculada não agora a raça, mas ao gênero. E para uma montagem que parece acomodar de forma bastante razoável sua metragem um tanto extensa, característica aliás nada incomum nos dramas mais pretensiosos de sua época (haja visto, paradoxalmente em tempos de Tik-Tok,  filmes como Oppenheimer ou a própria versão reciclada por Spielberg de Amor, Sublime Amor, ainda quatro minutos mais longa que a já extensa original, para ficarmos em dois exemplos dentre vários). Por fim, não teria como tampouco deixar de se destacar a versatilidade de Colman Domingo (no mesmo ano vivendo um papel tão distinto em Rustin).  Paralelos interessantes podem ser traçados com um ,dos pioneiros musicais de elenco negro, nos tempos do cinema clássico americano, Carmen Jones. Por outro lado, o seu contemporâneo Ficção Americana traz uma leitura saudavelmente, embora apenas provisoriamente cínica, de como a indústria cinematográfica tem se apropriado da “questão negra” na cultura estadunidense, inclusive privilegiando narrativas históricas como esta ou as inúmeras ambientadas no período das lutas pelos direitos civis.  Bazawule não possuía uma carreira de grande destaque prévia.|Amblin Entertaiment/Quincy Jones Prod./Scott Sanders Prod./Warner Bros. para Warner Bros. 141 minutos.


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