Filme do Dia: Eu, Daniel Blake (2016), Ken Loach

 


Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake, Reino Unido, 2016). Direção: Ken Loach. Rot. Original: Paul Laverty. Fotografia: Robbie Ryan. Música: George Fenton. Montagem: Jonathan Morris. Dir. de arte: Fergus Clegg & Linda Wilson. Figurinos: Jo Slater. Com: Dave Johns, Hayley Squires, Sharon Percy, Briana Shann, Dylan McKiernan, Kema Sikazwe, Micky McGregor, Stephen Clegg.

Em Newcastle, o marceneiro de 59 anos Daniel Blake (Johns), recuperando-se de um ataque cardíaco e com recomendações de descanso não consegue ganhar seu salário pois se vê enredado numa infindável teia burocrática que envolve atendimento pessoal, ligações telefônicas que demoram demasiado para serem atendidas e preenchimento de formulários via internet. Numa dessas situações, ele conhece alguém como ele, indignado com o tratamento que lhe é dispensado, a jovem Katie (Squires), mãe de Daisy (Shann) e Dylan (McKiernan). Ele se torna próximo da família, ajudando-a no que pode, porém uma Katie desesperada decide seguir a trilha que lhe fora sugerida em uma tentativa frustrada de furto a um supermercado: a prostituição. Quando Daniel fica sabendo, ele vai ao encontro dela que, sentindo-se constrangida e humilhada, afirma que não mais quer vê-lo. Porém, quando ficam sabendo que Daniel piorou de saúde, além de praticamente ter se desfeito de quase tudo o que tinha em casa a troco de dinheiro, Daisy ensaia uma reaproximação. Katie vai com ele no dia que muito provavelmente ele ganhará a causa que pleiteia faz tanto tempo, porém um ataque cardíaco fulminante o mata no banheiro, quando estava para ser atendido. Nos modestos serviços fúnebres, Katie lê uma carta que ele havia escrito pouco antes de morrer.

Contando com estratégias já demasiado gastas de busca de sensibilizar o espectador, incluindo a esperada morte de seu protagonista ao final, e igualmente indo em repertório nada distante daquele apresentado pelo neorrealismo italiano para provocar similar “vínculo piedoso” o filme, nesse sentido, não reproduz o próprio testemunho de dignidade que foi proporcionado por Blake em ações e pensamentos (como o da carta lida ao final), ao transformá-lo, como Katie, em meras vítimas de um processo cruel, e que, como esperado, não conseguem articular uma contra-ofensiva em relação a sensação de esmagamento e eminente perda da dignidade que vivenciam. E o único gesto concreto que Blake consegue efetivar, o que não é nada surpreendente em se tratando de tempos em que o sindicalismo e a mobilização da classe trabalhadora tende a ser mínima, é pichar os muros do prédio onde funciona a agência estatal que encaminhará seu processo, ganhando seus 15 minutos de fama e o apoio da multidão até a polícia chegar. O que carrega, de fato, o filme é menos sua trama que as muito boas interpretações de um elenco pouco ou nada familiarizado com o cinema, com destaque para a dupla principal. O filme tende a beber no repertório estabelecido de Loach ao longo de sua extensa e longeva filmografia, do personagem trabalhador um tanto turrão mas carismático às solidariedades que são criadas entre pessoas igualmente em situação vulnerável, sejam os ex-colegas de trabalho, o vizinho ou mais marcadamente Katie passando pelas dificuldades em se conseguir um apoio das instituições sociais. Nesse último quesito, o filme explora a humilhante peregrinação que leva, inclusive, ao mais patético dos momentos, que é o curso de formação de currículos – praticamente meio século após, tão patético quanto o universo escolar que afastava o jovem protagonista de Kes. A estratégia construída por Loach bebe, nesse sentido, na mesma fonte do drama trivial e apolítico e não se esquiva, como esse, de buscar a manipulação emocional, como na cena final da leitura da carta. Embora se tenda com o filme a achar, que a morte de Blake foi praticamente provocada pelo descaso do Estado, uma outra faceta – aqui apenas parcialmente explorada, diz respeito a morte de sua companheira, vazio afetivo que ele tentou remediar, sem muito sucesso, com a aproximação de Katie e de sua família – é conscientemente minimizada por Loach e seu habitual colaborador Laverty, já que ao menos no que diz respeito a Katie, tudo sinaliza para uma reconciliação. Aliás, não apenas para a reconciliação, como para a vitória dele em relação a questão trabalhista, o que evidentemente provocaria uma catarse e superação longe de adequada para o propósito em pauta. Palma de Ouro em Cannes. Sixteen Films/Why Not Prod./Wild Bunch/Canal+/Ciné+/Les Films du Fleuve. 160 minutos.

 

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